4 de outubro de 2009

Guerra do Ultramar - "No mato tinha de matar para não morrer"

Sobrevivência. Numa operação de limpeza matámos e destruímos tudo o que nos apareceu à frente. Foi uma coisa infernal, um tiroteio medonho.
Comecei o serviço militar no dia 24 de Janeiro de 1966, quando me apresentei na Guarda, no Regimento de Infantaria 12. Ali fiz a recruta. Em Abril fui para Abrantes tirar o curso de atirador. Parti para a Guiné no dia 30 de Julho, a bordo do paquete ‘Uíge’. Cheguei a Bissau e embarquei em batelões da Companhia Ultramarina como se de mercadoria se tratasse. Passadas uma boas horas saí em Catió. Nunca tinha visto tantos negros à minha volta mas, se eram os nossos inimigos, naquela altura pareciam bons amigos.
Quando cheguei ao quartel encontrei a Companhia de Cavalaria 763 a terminar a sua missão. Deram-nos um colchão pneumático e uma capa de oleado camuflada e fomos à procura de um sítio para dormir. Encontrámos um armazém devoluto e não pensámos duas vezes: enchemos os colchões de ar e deitámo-nos. O pior foram as melgas e os mosquitos que passaram toda a noite a picar-nos.
A companhia dividiu-se em três pelotões e fomos para a ilha de Como. Ficámos no aquartelamento do Cachil. Fiz várias operações logo no início da missão. Numa delas, de noite, atravessámos um rio numa canoa guiada por um negro e fomos fazer uma emboscada na mata de Granjola. O meu comandante tinha-nos avisado de que iríamos encontrar inimigos. E assim foi. Às primeiras palavras vindas da floresta nós não demos hipóteses para mais nada e começámos a disparar.

Foi uma coisa infernal, um tiroteio medonho. Matei muitos inimigos. Ali era assim: no mato tinha de matar para não morrer. O nosso guia foi atingido e teve de ser evacuado de emergência para o hospital. Nós regressamos a Catió, com o baptismo de fogo no currículo de combatente. Dois dias depois fomos destacados para o mato de Cufar. O meu pelotão foi apanhado pelo fogo inimigo e escondemo-nos na água de um rio. Eu só tinha a cabeça fora de água para poder respirar. As balas assobiavam por cima de mim. Vi a água a fazer salpicos e as granadas a rebentarem por perto. Pensei que ia morrer. No entanto, pedimos apoio aéreo e avançámos com toda a força que tínhamos: fizemos dezenas de mortos.

Em Catió fiz várias operações, muitas patrulhas. Mas se lá foi mau, na ilha de Como foi bem pior. As casernas eram os abrigos, com carreiros de formigas pelos chão e enxames de melgas pelo ar. Perdi seis quilos em quatro meses. Diziam que havia 300 minas e armadilhas. Por vezes, durante a noite, lá rebentava uma, o que nos colocava em sobressalto e alerta máximos. No quartel existiam duas filas de arame farpado. Numa estavam os candeeiros a petróleo. Cada posto tinha dois sentinelas. Enquanto um ia dar umas bombadas ao candeeiro, o outro ficava com a espingarda G3 para qualquer eventualidade. Era uma zona muito perigosa, ao ponto do nosso correio ter sido lançado pelo ar.

A alimentação era especial: ao almoço arroz com atum, ao jantar espaguete com chouriço. No dia seguinte era ao contrário. Não percebo como é que foi possível tratar assim os homens que defendiam os interesses da Nação. A higiene, por exemplo, era feita nos charcos, depois de uma granada rebentar, para as cobras e outros répteis se afastarem. O caso que mais me chocou aconteceu em Março de 1967. Numa operação de limpeza com quatro companhias de infantaria, uma de comandos e outra de fuzileiros, matámos e destruímos tudo o que nos aparecia pela frente. Os inimigos pareciam macacos em cima das árvores. Não lhes demos hipótese. No entanto, uma morteirada inimiga atirou com o furriel Ribeiro para uma cadeira de rodas.

Depois de uma luta renhida acabámos por encontrar e destruir o armazém onde eles guardavam o armamento. Em Janeiro de 1968 deixámos Empada e fomos para Bissau, a missão aproximava-se do fim. Fizemos escala na ilha de Bolama, onde ficámos uns dias, porque o presidente Américo Tomás foi lá fazer uma visita e era preciso fazer-lhe segurança. Na véspera da visita entrámos nas lanchas militares e fomos para a Mata, a sul da ilha. Apercebemo-nos que os inimigos iam atacar. Fomos atacados, mas o Seia, armado com uma bazuca, chegou para eles. Limpámos a zona e Américo Tomás pôde fazer a visita sem problemas.

Poucas semanas depois chegou o navio ‘Niassa’ para nos trazer de regresso. No dia 15 de Maio deixei a Guiné com destino a Lisboa, onde desembarquei um mês depois. Apesar de já ter passado muito tempo ainda hoje me recordo da guerra como tivesse sido ontem.

Jorge dos Santos Patrício - Guiné (1966-1968) Fonte: Correio da Manhã

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