19 de outubro de 2009

O apelo de uma vida com farda

Não é apenas a fuga ao desemprego que empurra os jovens (mesmo licenciados) para a tropa. Há quem sonhe ser piloto como o avô quis ser ou quem queira a boina que o pai usou. Há os que desejam servir o país. Mas todos querem um contrato.

Aos 18 anos, os camuflados militares ainda não lhes servem – a sua guerra é a escola. Com insuficientes lances de barba, cabelos descaídos até à testa, vestem t-shirts de cores estridentes e calças de ganga. Apesar de participarem no Dia Nacional da Defesa, o que muda nas suas vidas? O olhar deles amarra-se às armas – fascinam-nos porque se impõem. Renato Caetano, de Sintra, veste pela primeira vez um colete e um capacete do Exército, só um dos seus olhos azuis brilha como um farol enquanto o outro se prende à mira de um lançador portátil de Míssil AA Stinger. Tem na mão (sem noção) uma poderosa arma de artilharia antiaérea usada no Afeganistão. Renato escolheu o futuro: o 12º ano ficou incompleto, mas já passou nas provas para ingressar na Marinha, como voluntário, e agora só deseja que o chamem para o curso. 'Pensei que seria melhor encaminhar já as coisas para ter um ordenado. Dava-me jeitinho para orientar a minha vida e não viver às custas dos meus pais.' Este é o seu motivo para vestir a farda.

Empoleirado nos comandos da torre de lançamento do Sistema de Míssil Ligeiro Chaparral, imponente o suficiente para o regalar, está Rafael Batalha, também ele de Sintra. 'É um perigo ir para um cenário de guerra', pensa. 'Aos 18 anos, não sei se estamos preparados para a possibilidade de morrer.' Mas no meio de tamanho arsenal bélico, no Regimento de Artilharia Antiaérea 1, em Queluz, acaba por se sentir em segurança. E pondera ir para os Comandos. 'Pensei que pudesse ir para a universidade. Mas como não queria ter um trabalho de secretária, como gosto de actividade física e sempre vi muita televisão, quero mais acção, quero ir para o Exército.'

Ao seu lado, Marcelo Aparício, de Lourel, sobressai pela t-shirt verde fluorescente e olhar de miúdo, agarrado a uma espécie de canhão dos tempos modernos (o bitubo AA 20mm M81). Apesar do aparato, confessa que o seu sonho é voar mais alto. 'Gostava de entrar para a Força Aérea no curso de piloto, mas o exame de Matemática não me correu bem.' Optou por entrar este ano no curso de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, pensando que em breve vai voltar a prestar provas para ser piloto. 'A sensação de voar é o mais próximo que temos da liberdade total.'

MULHER DE ARMAS

Os pés que as botas militares escondem agradecem saltos altos quando a continência está arredada do trato e a noite pode dançar – mas não se imaginam sem elas. Ao fim-de-semana Rute, 19 anos, abandona no quartel a soldado Alexandre, apelido que a distingue no Regimento de Artilharia Antiaérea 1, e ruma para junto da família. É assim desde Janeiro, mês que chegou para cumprir a vontade antiga – que conheceu nos olhos do progenitor, ex-comando, e passou a brilhar nos dela. 'Sempre me imaginei militar. Nem sei dizer o que seria se não o fosse. Por causa da profissão do meu pai e também pelas histórias da Guerra Civil em Angola que ele conta, de quando era criança e não havia ninguém para ajudar. Sempre pensei: quando crescer quero fazer alguma coisa por estas pessoas que não têm nada. E quero fazer disto a minha vida. Toda.' A convicção nas palavras é a mesma com que se senta na ‘torre’ para cumprir a função de apontadora de míssil que com orgulho desempenha. O comando é dela.

Timóteo em casa dos pais, aspirante Ferreira no quartel, o mesmo da soldado Alexandre. 'Sou a favor das mulheres fazerem parte mas por outro lado pode haver descontentamento porque nas avaliações há um certo desequilíbrio, mas tudo se digere. E elas até nos ajudam a coser um botão que nos caia da farda'. Rute diria mais tarde que corre todos os dias depois do ‘expediente’ para estar à altura dos camaradas masculinos. 'Não quero ser beneficiada'. A agulha não pica o ponto do sexismo e escuda-se na igualdade. 'Aqui não há diferenças'.

O aspirante Ferreira está no regimento desde Junho. Estava licenciado há um mês em Gestão e Administração Pública quando tropeçou num concurso do Exército para oficiais onde pediam licenciados na sua área. 'Pensei: se não ficar, pelo menos experimento a tropa, aquele sofrer que sempre achei importante para a formação pessoal'. Ficou e deu a volta à vida. 'Mudou a minha forma de encarar as coisas e o poder financeiro. Um estudante não tem onde cair morto, o que é frustrante. Agora tenho porque trabalho e, ao mesmo tempo, como militar, cumpro uma missão'. A incumbência diária, como chefe de secção financeira, será mais uma vantagem a somar. 'Lá fora pedem licenciados com anos de experiência e isso eu estou a fazer aqui. E ao mesmo tempo consigo fazer um mestrado'. Só não sabe se o futuro vai continuar a vestir farda ou pôr tudo em sentido numa empresa pública.

O regime de contrato nas Forças Armadas contrapõe a frustração generalizada com o desemprego civil. Chegada para cumprir a recruta, a 22 de Junho, na Base Aérea da Ota, vinda de Mafra, Catilina Moreira, 23 anos, licenciada em Anatomia Patológica, Citológica e Tanatológica, deixava para trás a profissão de secretária numa construtora civil. Foi o que conseguiu no meio de tantos currículos enviados. Na Força Aérea viu a 'perspectiva de ter um contrato de trabalho, fazer carreira e de gostar.' Muitos dos seus amigos passaram a perguntar-lhe como consegue ser militar. A resposta só se tornou simples depois da recruta: 'Se eu consegui, também tu consegues', diz em tom desafiador, agora que se está a especializar como operadora de comunicações.

Quando Catilina entrou para a Força Aérea, Ricardo Abreu, 24 anos, licenciado em Ciências e Tecnologia Animal, cumpria parte de um sonho antigo. O avô fazia aeromodelismo e, se pudesse, teria sido piloto. Ricardo nunca se esqueceu de desejar o mesmo. Depois de concluído o estágio curricular, de dois meses, numa empresa de produção de pregado, na Praia da Tocha, viu o anúncio num jornal de uma empresa civil que pedia controladores de tráfego aéreo. Correu à procura da tão desejada segurança do papel assinado com um contrato. E pensou noutras vantagens: 'Os ordenados são sempre importantes e, é obvio que, em comparação com a minha área de curso, são superiores.' Por isso optou por se especializar como técnico operador de controlo aéreo e radares de aviões como os caça F-16.

Miguel Oliveira, 23 anos, de militar só tem o corte de cabelo e cavada na alma a vontade de servir o País. Estudou até ao 8º ano para ser operário numa indústria do ramo automóvel, perto de casa, na Trofa, a fabricar peças em alumínio para ar condicionado e travões. No turno da noite não ganha mais que 600 euros. Em casa ajuda com 150 e o resto do dinheiro gasta no café, tabaco e em roupa.

Já lá vão os anos em que sonhava ser futebolista. Jogou no Trofense e até alcançou a 1ª divisão de juniores e de juvenis. Hoje, só sente o peso de querer ser fuzileiro. 'Queria enfrentar a dureza e o sacrifício. Para mim, se calhar, dá-me prazer.' Não acha que a vida que leva fora de um quartel seja má. Tem até uma liberdade que não se coaduna com a condição militar. Além de que ficará distante da família, a 380 quilómetros. Miguel pouco sabe da vida de fuzileiro. Sabe apenas o que o pai lhe contou do tempo em que lá esteve.

'Eu entrei em 1986. Na altura, se eu morasse em Lisboa, tinha ficado na Marinha. Mas quando eu cumpri o serviço militar tive que casar. A minha mulher engravidou do Miguel...' E depois de o pai ter interrompido o sonho de ser militar, o filho já prestou provas e espera que a Marinha o chame... para ganhar a boina e deixar de querer usar a velhinha – a que o pai guardou como recordação do sonho.

'ESTE É O MEU HABITAT NATURAL'

Aos 22 anos, Miguel Dias Pinheiro é aspirante da Marinha. Depois de quatro anos na Escola Naval jurou bandeira e está pronto para embarcar. 'Sinto-me em casa no mar, nesta vida que escolhi. Soube sempre o que queria e é isto, não me desiludi nem tinha falsas expectativas. O meu pai e o meu irmão também são da Marinha e até já tinha velejado na ‘Sagres’. Sou praticante de vela e este é o meu habitat natural. Não poderia ter outra vida'.

Para o aspirante, as virtudes da vida militar residem na 'disciplina, no rigor e na liderança de homens'. A aguardar a promoção a guarda-marinha a qualquer momento, Miguel garante que 'é mais difícil para quem fica em terra, não para quem vai'. Nem a família que no futuro quer constituir atrapalha a resposta pronta. 'Não me preocupa muito. Tenho como exemplo os meus pais, que estão casados há mais de 30 anos e viveram assim'.

PERFIL
Miguel Dias Pinheiro tem 22 anos e está à espera da promoção a guarda-marinha. É aspirante e ainda está quente o 'emocionante' juramento de bandeira que fez a 25 de Setembro último e no qual juntou a família mais próxima. Entrou para a Marinha porque toda a vida conviveu com a profissão do pai – também ele marinheiro – e lembra-se de o esperar em casa depois de cada longa jornada. Dois tios e um irmão também são da Marinha.

'PENSO MUITAS VEZES EM REGRESSAR'

Marta Costa era a 'senhorinha protegida' da casa quando ingressou no Exército, aos 18 anos. 'O meu pai foi da Armada e sempre me entusiasmaram as histórias e também porque queria ser jornalista e os meus pais não podiam pagar a universidade. Pensei que na tropa podia ganhar dinheiro para os estudos e, ao mesmo tempo, aproveitar os 3% de vagas dos militares'.

O sonho ficou por cumprir, 'o número de serviços era enorme e não tive disponibilidade', mas encontrou-se no espírito. 'Ajudar em cheias e incêndios foi o que me marcou mais. Senti-me útil, amadureci espiritualmente e senti-me parte de um corpo unido'. Três anos depois acenaram-lhe com uma oportunidade de negócio por conta própria e desistiu da vida militar. 'Penso muitas vezes em regressar, aprendi muita coisa. Há uma Marta antes da tropa e uma Marta depois da tropa'.

PERFIL
Marta Costa 24 anos. O primeiro dia de recruta foi 'muito complicado. Atiraram-me com lençóis e cobertores e disseram-me: ‘Faz a tua cama.’ Não estava habituada, sou a mais nova em casa e estava muito protegida'. Chegou a cabo no quartel da Sra. da Hora na especialidade de transmissões. As mulheres representam 23% das Forças Armadas.

PRAÇAS
A Marinha tem 2504 militares em regime de contrato. Este ano entraram 362 praças e 50 oficiais.
FORÇA AÉREA
A Força Aérea tem 2853 militares em regime de contrato. Representa 41% dos três ramos.
EXÉRCITO
O Exército tem 12 734 militares em regime de contrato e de voluntariado. Este ano formou 1972 praças.(C.M)

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