9 de março de 2011

General Garcia Leandro "Não vejo que a Força Aérea e a Marinha possam reduzir mais"

O general Garcia Leandro reconhece, em entrevista ao Diário Económico, que as forças armadas "não podem ser excepção" nos cortes impostos pela crise. "As forças armadas não podem ficar de fora das restrições orçamentais", diz o ex-governador de Macau, que não entende, ainda assim, como a Força Aérea e a Marinha poderão cortar mais nos respectivos orçamentos: "A dada altura estão nos limites", acrescenta o actual presidente do Conselho Consultivo do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, que apresenta, amanhã em Lisboa, o livro "Macau nos Anos da Revolução Portuguesa 1974-1979".

"Julgo que o Governo e o Presidente da República estão conscientes de que há limites abaixo dos quais não se pode baixar [o orçamento para a Defesa], mas dito isto, as forças armadas não podem ficar de fora desse esforço de contenção orçamental", afirma Garcia Leandro. "Mas o que também digo, neste livro, é que esta situação era previsível há dez anos, e perfeitamente evitável".

Indo mais fundo na origem do problema económico, o general concretiza a resposta que aborda nesta obra: "Acho que a responsabilidade está nos partidos políticos, claramente". "Não é a arquitectura política do país que está em causa, mas são as pessoas que têm vindo a desempenhar funções políticas ao longo destes anos que têm enormes responsabilidades pela situação em que nós estamos", diz Garcia Leandro, que terá Ramalho Eanes e Almeida Santos na apresentação do livro.

O que traduz nesta obra sobre mais de três décadas de democracia e desde a governação em Macau "é uma questão de pessoas e de comportamentos". "É [um livro] sobre as fragilidades humanas e sobre o comportamento em funções de Estado. E o que nós encontramos aqui em Portugal, infelizmente, é que as pessoas vão para essas funções de Estado sem terem uma preparação e sem uma visão ética de Estado, de serviço de Estado. De onde é que vêm as pessoas, normalmente, para os partidos políticos? De uma origem geográfica, de regiões, autarquias, freguesias: distribuem-se lugares", diz o autor. "Mas também das juventudes dos partidos e dos sindicatos, portanto [essas pessoas] não têm uma visão de Estado: não têm uma visão da situação internacional e os erros vão-se acumulando. Este capítulo [do livro] é quase um grito de desespero. E, de certo modo, um testamento, porque está um bocadinho fora do livro", diz.

Garcia Leandro escreve também, nesta obra, sobre como "governar com responsabilidade", abordando a actualidade. Questionado sobre que ética de Estado defende, reage com um exemplo: "Ainda agora tivemos uma situação na Assembleia da República, com determinados partidos a quererem marcar uma limitação para as remunerações dos gestores de topo, e os dois partidos do bloco central não querem". "É evidente que há uma distribuição de lugares que fazem o bloco central e são os dois maiores partidos os grandes responsáveis. Eu e algumas pessoas temos pensado que talvez pudesse haver uma quarta República, mas não vale a pena, porque as pessoas são as mesmas: ou os partidos se reformam ou ...", diz Garcia Leandro para quem os apoios da Igreja Católica e da China foram os principais trunfos nas melhorias que permitiram uma transição de Macau bem sucedida, mais tarde, em 1999.


O livro "Macau nos Anos da Revolução Portuguesa

1974-1979" e as "fragilidades humanas"

Neste livro sobre Macau, quando descreve o Portugal actual fala em "aceitação silenciosa do empobrecimento colectivo, desalento, impotência e cepticismo". Qual é a resposta, que intencionalmente não deixou no livro?

Eu acho que a responsabilidade está nos partidos políticos, claramente. Não é a arquitectura política do país que está em causa, mas são as pessoas que têm vindo a desempenhar funções políticas ao longo destes anos que têm enormes responsabilidades pela situação em que nós estamos.

É uma questão de pessoas?

É uma questão de pessoas e de comportamentos.

O livro aborda com abundância as "fragilidades humanas". É essa a questão essencial?

Sobre as fragilidades humanas e, chamo a atenção embora tenha tido grandes dúvidas em escrever isso, sobre o comportamento em funções de Estado. E o que nós encontramos aqui em Portugal, infelizmente, é que as pessoas vão para essas funções de Estado sem terem uma preparação nem terem uma visão ética de Estado, de serviço de Estado. De onde é que vêm as pessoas normalmente para os partidos políticos? É de uma origem geográfica, região, autarquias, freguesia, distribuem-se lugares. Mas é também das juventudes dos partidos e dos sindicatos, portanto não têm uma visão de Estado: não têm uma visão da situação internacional e os erros vão-se acumulando. E portanto esse capítulo quase que é um grito de desespero. E, de certo modo, é um testamento, porque está um bocadinho fora do livro.

No livro escreve sobre "governar com responsabilidade" e reporta para o tempo e situação actual. É isso a ética do Estado que defende? A necessidade de "despachos antiprendas" como os que lançou em Macau enquanto Governador do território entre 1974 e 1979?

Não é só isso, embora decisões como a do "despacho antiprendas" sejam de importância evidente. Mas ainda agora tivemos uma situação na Assembleia da República que foi determinados partidos quererem marcar uma limitação para as remunerações dos gestores de topo e os dois partidos do bloco central não querem. É evidente que há uma distribuição de lugares que fazem o bloco central e são os dois partidos os grandes responsáveis. Eu e algumas pessoas temos pensado que talvez pudesse haver uma quarta República, mas não vale a pena, porque as pessoas são as mesmas: ou os partidos se reformam...

Defende a reforma dos partidos ou a reforma das pessoas?

Repare, somos portugueses: o António Barreto, Medina Carreira, Ernâni Lopes, Jorge Sampaio já disseram isto. Toda a gente anda a dizer isto. E mais, não se pode governar a pensar no dia seguinte.

Qual é a razão, ou razões, para as coisas não mudarem, apesar de tanta gente afirmar essa necessidade como refere?

Acho que tem uma visão de interesses pessoais, de interesses partidários. O povo português teve, em determinadas alturas, momentos áureos de riqueza mas de que o país não beneficiou: beneficiaram algumas famílias. As revoluções têm sido outra coisa muito má, porque o poder cai na rua, há grandes roubos e grandes assaltos. O século XIX e o século XX são demonstrativos disso: a revolução liberal, a guerra civil, o regicidio de 1908, a revolução de 1974. Quantas pessoas enriqueceram depois do 25 de Abril e que não tinham nada antes? Onde é que foram buscar o dinheiro? São perguntas que toda a gente faz, mas hoje as pessoas têm a noção do país em que estão e a revolta... Quer dizer, há uma desconfiança muito grande de todas as instituições e somou-se a isto também a banca, porque a banca era uma entidade respeitada: hoje também não há confiança na banca...

O que acha que provocou essas novas desconfianças?

Temos toda esta crise que vem desde 2008 e que tem origem na banca. Na especulação, e no nosso caso cometemos o gravíssimo erro de ter destruído o aparelho produtivo. Destruímos a agricultura, as pescas e a própria indústria: portanto nós importamos a maior parte da alimentação que compramos e, portanto há todo um processo que as pessoas vão vivendo.

"Uma grande coligação entre vários partidos"

No livro, diz que a sociedade não reage. Já percebeu as razões?

Há quatro razões para não haver reacção: primeiro são os subsídios: enquanto as pessoas tiverem os subsídios não reagem. Outra, porque há claramente 20% de economia paralela. Outra são as pessoas que estão a recibos verdes e quem tem recibos verdes está muito inseguro, portanto não faz nada. E outras são ajudas familiares e comunitárias. Portanto, há aqui um processo de equilíbrios e de ajudas, mas um dia podem acabar os subsídios e vamos passar por uma grande crise. Mas penso que o povo português percebe que, apesar de tudo, é melhor esperar do que ter essas reacções disparatadas como na Grécia. Isso só piorava as coisas. O que tem que se fazer é a reforma dos partidos. Tem que haver uma grande coligação entre vários partidos, como várias pessoas têm dito e o doutor Jorge Sampaio tem insistido muito nisso. E mais: é a necessidade de haver programas que ultrapassam uma legislatura. Actividades que sejam a oito ou dez anos: não se pode estar sempre com esta limitação de muito curto prazo que são as próximas eleições, e às vezes não se saber se o Governo chega às próximas eleições. Aliás, parece-me que neste momento é melhor que o Governo chegue ao final: o Governo tem que ser responsabilizado e mudar neste momento o sistema não melhorava nada a situação. Aliás acho que o líder do PSD tem perfeita noção disso.

Ainda sobre essas "fragilidades humanas" que descreve no livro: as pessoas são hoje piores do que eram nesse tempo do seu governo em Macau?

Claramente, hoje são muito piores. As pessoas de grande qualidade política que se envolveram quer na área política, quer na área económica, afastaram-se todas. Ou afastaram-se por idade ou por cansaço ou foram afastadas. Não há comparação. Havia uma grande fé, havia luta, ideais e a juventude das lutas universitárias do 25 de Abril, tudo isso. Havia uma fé em mudar o sistema.

As pessoas deixaram de concentrar-se na ideologia e na política para optarem pela focagem na parte económica, da sobrevivência e da gestão do dia-a-dia? É isso?

As pessoas hoje pensam na conta bancária. Mas para onde foi o dinheiro da CEE? Alguém sabe dizer-nos, estatisticamente, rigorosamente, para onde é que foram as ajudas da CEE, que vieram? Tem vindo dinheiro aos milhões.

Tem uma ideia de para onde foi esse dinheiro?

Deve estar nas contas de alguém.

"Tive um apoio enorme da Igreja Católica e dos chineses"

Este livro pretende também ser uma obra sobre o país na actualidade e sobre a governação?

Não. Este livro é um registo histórico, indispensável, que não estava feito. De uma época muito difícil em que o país passou por situações em que cada um só conhecia bem a área em que estava a viver, e portanto houve coisas que correram muito mal. No caso de Macau correu bem, mas foi um esforço enorme de quem lá estava, com apoios: tive um apoio enorme da Igreja Católica e dos chineses. E portanto é uma obrigação de cidadania e um registo para a história, que tem que ficar feito. Quando era novo lia muito, nasci em Angola e o meu pai tinha uma grande biblioteca do Ultramar. E portanto todos os governadores gerais, todos os comandantes militares faziam relatórios: havia livros, e tal. Aliás, hoje estamos a regressar a isso através de investigadores universitários.

Nesse sentido era repartida a preocupação?

Com a necessidade de acabar as guerras na Guiné, em Angola e em Moçambique, era uma coisa dispersa. Depois S. Tomé e Cabo-Verde, sem falar aqui no Continente e nas ilhas dos Açores e Madeira. Havia e há um desconhecimento das coisas, e pergunta-se, porque é que Macau deu este resultado. Mas as sementes foram postas em determinada altura. Além do apoio da Igreja Católica, as grandes questões são o estatuto orgânico de Macau - criando um estatuto diferente, em que Macau se governa lá - com uma Assembleia Legislativa semi-eleita, que não podia ser eleita na totalidade. Com o apoio da China, claramente. Depois, a alteração das forças de segurança interna, não eram necessárias forças militares, porque não tínhamos ameaça exterior.

Foram introduzidas mais alterações?

Foram também no sistema bancário. O regime anterior tinha uma lógica, boa ou má tinha uma lógica centralizada em que a banca também estava. Os governadores gerais eram agentes políticos mas tinham agentes na banca. E quando Macau passa a ter um estatuto de autonomia, a banca tem que depender do governo de Macau. O Banco Nacional Ultramarino tem que depender de Macau. Não pode ser como a agência há aqui na Avenida de Berna ou em Mangualde. E essa foi a grande alteração, não só de pôr o banco a cumprir as orientações do governo na área monetária e financeira, mas fazer com que passasse a haver mais receitas para o território. Porque as receitas vinham todas de Lisboa. São grandes alterações estruturais, bem como a questão da negociação longuíssima, e com sucesso, para a nomeação do bispo [de Macau, Arquimínio Rodrigues da Costa], que foi uma coisa fabulosa a forma como decorreu. Mas também as negociações diplomáticas com a China em que tivemos um papel importante.

Como apoiou em concreto a Igreja Católica o seu governo em Macau nesse período que designa como "muito difícil"?

A Igreja Católica tinha uma ocupação muito forte, em todas as áreas de actividade em Macau relacionadas com a Educação, a Saúde e a Assistência Social. Fundamentalmente na área da Educação. E depois também com posições políticas: havia padres ultra-conservadores, padres que tinham estado presos na China e portanto a visão deles relativamente à China era muito a preto-e-branco. Mas havia também uma Igreja moderna. Mas sobretudo o que aconteceu foi que a Igreja ganhou confiança em mim.

Tudo isso resulta da sua formação católica dos tempos do Colégio Militar ou, por outro lado, da sua personalidade política e dos consensos que alcançou em Macau?

Fui formado dessa maneira, mas portanto há um momento [que o autor descreve no livro] em que tenho esta conversa com o padre Maio, que era o provincial dos Salesianos, e que pretendia encerrar uma escola muito importante: disse-lhe que não podia encerrar essa escola. Era muito importante o Colégio de D. Bosco, uma das melhores escolas primárias e secundárias, e técnico-profissional em Macau. Tinha uma importância brutal, mas ele estava tão desesperado com a situação em Portugal que chegou a este ponto. Mas disse-lhe, "não faça uma coisa dessas": fiz uma acção de missionação sobre um missionário. O padre Maio foi de Lisboa a Macau com essa missão, e eu consegui parar aquilo, graças a Deus.


"Para mim a confiança é nas pessoas, independente de esquerda ou direita"

Também tinha, nesse tempo, a confiança de pessoas mais à esquerda?

Para mim a confiança é nas pessoas, independentemente da esquerda e direita que não me diz nada, e cada vez menos. De facto, ali, o que havia naquele momento específico era um sistema que estava bloqueado com pessoas que eram da direita. Muito paralisado, de uma forma muito dogmática. Passei a minha vida no Ultramar, e o Ultramar não evoluía ou evoluía pouco. Aliás, Angola e Moçambique desenvolveram-se muito depois do princípio da guerra, muito com o esforço dos efectivos militares que foram para lá e que passaram mais tempo a construir e a ajudar as populações do que a guerrear. A ajudar as populações na saúde, escolas, etc..É evidente que ali [em Macau] havia uma desconfiança em relação à direita, mas também em relação ao Partido Comunista e à extrema esquerda. Aquilo acabava por ficar muito ao centro: era o Partido Socialista e era PSD. Mas muito mais importante, como sempre foi para os portugueses, eram as personalidades: o doutor Mário Soares e o doutor Sá Carneiro deram essas garantias. Como o general Spínola ou o general Eanes: quando diz isso da esquerda e direita, para mim não faz muito sentido, na altura talvez fizesse. São as reformas da sobrevivência de Macau: não havia alternativa se mantivéssemos o estatuto anterior. E manter uma desconfiança teria dado muitos problemas, quando se tratava de manter a soberania: quando dizemos que é um território sob administração portuguesa, isto é uma frase de uma importância e de uma delicadeza espantosas. Estamos lá, por aluguer, ou somos visitantes. E isto abriu tudo. E depois tinha que negociar com a China o estatuto, mas não tinha relações diplomáticas com a China. Como é que faço? Então nomeei a tal comissão, em 27 de Dezembro, que trabalhou muito bem. E depois tive esta ideia de publicar o estatuto, e de o pôr durante um mês à discussão: em português e em chinês. O que dava a oportunidade à China de mandar os seus recados: a China mandava propostas e era a maneira que eu tinha.

De negociar sem o fazer formal ou institucionalmente?

Sim. Quando mando o projecto para Lisboa, não tenho dúvidas de que tenho o apoio chinês para aquilo. Realmente, sempre tive atrás de mim a China, além da Igreja Católica. A grande dúvida da China era se Macau iria ser um instrumento dos soviéticos contra nós: quando perceberam que não, ficaram descansados.

A Igreja Católica aproximava-o das pessoas e a China dessa negociação?

Exactamente.

Essa é a chave para terem sido melhores os resultados do que em Timor, onde se verificou a invasão por parte da Indonésia?

Não quero fazer juízos sobre Timor, porque não estava lá. Tenho um capítulo sobre Timor, porque tenho conhecimentos pelo que vi. Conheci bem Timor, onde a minha filha mais velha nasceu, e estive 27 meses entre 1968 e 1970. Agora, fazer julgamentos estando longe quando aquilo aconteceu...

Mas foram esses dois apoios os segredos do sucesso de Macau?

São regiões muito diferentes. Macau é uma zona urbana, tem ao lado Hong Kong que ajuda muito, os chineses não estavam com pressa nenhuma de levantar problemas. E eles só levantariam problemas se houvesse convulsões internas em Macau. Como aconteceu em Timor, que abriu a porta à Indonésia. Depois o território de Macau é bastante mais pequeno que o de Timor, que é relativamente grande, com uma orografia muito difícil com montanhas e vales muito fortes e grandes florestas e uma população rural. Portanto, são situações muito diferentes e nem sequer queria entrar por aí. Queria apenas dar dados, porque foram coligidos por mim. Mas acho que não se podem fazer comparações.


"Empresários portugueses havia muito poucos em Macau"

O que ficou de Macau para Portugal?

O que é que ficou? Ficou este relacionamento que levou depois à transferência da administração em 1999. Deixámos aquilo a que chamo uma jóia em Macau. Uma jóia no que diz respeito a infraestruturas, a capacidade de prestação de serviços e ao relacionamento com os chineses. Antes não era assim. Há uma coisa que conto no livro: pouco tempo depois de chegar fui visitar o Hospital de Kiang Wu, que era o 'ex-libris' daquilo que a população chinesa de Macau tinha realizado. Tinha sido inaugurado em 1872. E em Dezembro de 1974 eu sou o terceiro governador a visitar o Hospital de Kiang Wu. Portanto, há aqui um afastamento visível, que não pode acontecer: tem que se integrar. E nós puxámos muito a população chinesa a nós através do desporto, das escolas e da saúde.

Qual era o papel dos empresários?

Empresários portugueses havia muito poucos em Macau: havia o BNU, mais uma ou outra empresa, pouco mais. Porque a economia de Macau não era a da potencia colonial, mas a dos locais. Aliás, nós chegámos a Macau, em 1513, com meia dúzia de gatos pingados. Portanto, tinha que ser uma situação de coabitação e a economia era dominada por interesses chineses e ingleses. Por isso, era muito difícil levar empresas portuguesas para Macau. Mas acabando a resposta do que ficou de Macau: ficou isto. É que a China percebeu a importância estratégica da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], a que aqui em Portugal se tem dado pouco significado. Então a China, como quer entrar no mundo da lusofonia, sediou em Macau o secretariado das relações com a CPLP e já se fizeram em Macau congressos das universidades de língua portuguesa, dos empresários de língua portuguesa, dos escritores de língua portuguesa, jogos desportivos dos países lusófonos, etc.. E Macau, como a China está em fase de expansão, tem ali uma base de apoio, e devemos privilegiar esta relação com a China.

Como acha que se pode potenciar essa relação?

Independentemente do regime, porque se fala de um regime autoritário, mas é um regime autoritário em transição. E os chineses nunca viveram tão bem como vivem agora. Os chineses agora é que estão expansão e também é único na História haver um único governo a governar 1,3 mil milhões de pessoas. Tem que se tentar perceber que isto é uma realidade diferente e há alguma autonomia já para as regiões, nas províncias de Cantão, Xangai, etc. têm capacidade para definir as remunerações dos seus funcionários públicos. Portanto, há alguma autonomia, agora, numa população de 1,3 mil milhões já há 400 milhões a viver bem. Os restantes são rurais, é certo, mas há um processo evolutivo em muito pouco tempo. Tem a ver com a própria maneira de viver dos orientais que é a da honra pessoal e o facto de ser mais importante a comunidade do que a pessoa. E eles estão habituados a isso. Agora, consoante esse esforço, eles continuam a trabalhar mas colhem os resultados desse esforço.

Até que ponto subiu o nível de vida na China?

Não sei se o nível de vida das pessoas subiu muito, mas subiu alguma coisa. O que sei é que aumentou muito a capacidade do Estado chinês. O Estado chinês hoje tem poder. Há uns anos ouvia um dirigente chinês dizer que os ocidentais falavam muito nos direitos humanos, mas dizia ele que os direitos humanos é comer todos os dias, ter casa, ter médico: isso é que são os direitos humanos. Temos que começar por aí. Há aqui uma grande diferença na filosofia de vida entre os ocidentais e os orientais: para os ocidentais é o indivíduo que está no centro, para eles é a comunidade que está no centro.

"A pior coisa que pode acontecer é deixar o poder cair na rua"

Estes anos entre 1974 e 1979 que descreve, coincidentes com o seu governo em Macau, foram os mais difíceis para Portugal neste período da democracia?

Foram muito difíceis, mas creio que o regime anterior com Marcelo Caetano poderia ter dado um grande salto para resolver o problema. E a pior coisa que pode acontecer para um país é deixar o poder cair na rua. Como é que resolve alguma coisa deixando o poder cair na rua e fazer, ao mesmo, uma descolonização. Tudo isto poderia ter sido programado, planeado com os próprios movimentos, um programa a dez anos ou a 20 anos era perfeitamente possível. Como é que se ultrapassou aqui, em Angola e em Moçambique? Diz-se que o que sobreviveu melhor foi Cabo Verde, é um bom exemplo. Agora, o período que nós estamos a viver era para mim completamente imprevisível. Como é que é possível que isto aconteça? Só por irresponsabilidade. Nem eu! [exclama, repetindo a frase conclusiva que utiliza no livro].

Esse período foi o mais difícil da História recente de Portugal?

Em cima da minha geração, nasci em 1940, caiu tudo. Mas um dia fiquei descansado: foi no dia 1 de Janeiro de 1986. Veio a Comunidade Económica Europeia, não vamos ter mais problemas. Mas não aproveitámos bem. Veja que arranjámos sempre alternativas estratégicas para as soluções do país enquanto o mundo não estava todo descoberto: saltámos do Oriente para o Brasil, do Brasil para África, da África para a Europa. Agora temos o mar, mas para o aproveitarmos temos que ter capacidades próprias: o mar pode ser o ouro do Brasil novamente. E o ouro do Brasil quem é que beneficiou? Beneficiou algumas famílias, o Convento de Mafra, e essas coisas que surgiram. E não teve consequências na educação da população, nem na economia, na agricultura e aí há muita culpa da Igreja: uma Igreja ditatorial, concentracional: é a Igreja da Inquisição. Todos sabemos a luta que foi nos países europeus para fazerem a separação entre o Estado e a Igreja. Aliás, nos países protestantes, no Centro e Norte da Europa, essa separação dá-se mais cedo.

"Uma maior intervenção da sociedade civil"

Regressando, de novo, ao momento actual e em jeito de fecho de ciclo: a resposta de que fala neste livro é a da "indignação"? Em que termos?

Creio que a resposta é uma maior intervenção da sociedade civil.

Qual acha que será o limite para as pessoas?

Não sei. Talvez quando as pessoas começarem a passar fome. Mas faço parte de um grupo chamado PASC [Plataforma Activa da Sociedade Civil], que envolve 18 associações e tem a Confederação Nacional das Associações de Família, tem a APSDI, tem a Associação Portuguesa de Imprensa. Tem muitas associações de origens diferentes e o que se está a pretender é ter um trabalho sobre todas as áreas, desde o mar, o sistema político, a parte da demografia, a importância da tecnologia, etc., para mandarmos recados ao Governo. Mas não só. Nas eleições presidenciais enviámos uma carta a cada candidato com uma lista de sugestões em que dizíamos: "não vale a pena ser candidato se não tiver em consideração esta e esta situações". Quando fizemos a nossa apresentação sobre o mar e as pescas enviámos também uma carta ao primeiro-ministro. E a Saer também faz parte, aliás o professor Ernâni Lopes bateu-se até ao limite pela importância do mar. Avaliou a sua visão estratégica para as empresas.

Também colocava a ênfase nas questões de comportamento.

Exactamente. Aliás a nossa grande questão e a nossa grande crise, antes de ser financeira, é uma crise de valores. Qual é o português que tem confiança em quem está no Parlamento? Isto sem pôr em causa excepções honrosas: há pessoas com muita qualidade e que trabalham muito. Esta máquina de poder que ou está no Parlamento ou está no Governo ou na oposição e quando toca aos interesses dos partidos defendem-se como uma organização corporativa.

Está a excluir o Governo e a Presidência da República?

O Presidente da República, apesar de tudo, tem sido a referência de confiança e de estabilidade. Ninguém é perfeito, mas é ali que tem uma posição de estabilidade, com mais ou menos intervenção. Mas o Presidente da República tem sido sempre ao longo destes anos esse símbolo de confiança, como se vê pelas sondagens. Agora nesta fase actual, o Presidente da República diz que vai ter uma intervenção maior. Estamos numa fase pós-democracia: estamos a falar do período pós-74 até à consolidação da democracia e com a entrada na Comunidade Económica Europeia, tudo isto tem um sentido e um rumo. Mas tem-se vindo a degradar e assim é, fundamentalmente desde os finais do século XX, nesta década. Tem que haver aqui uma grande mudança.

Pode concluir-se deste seu livro, e das suas palavras, que melhorando as pessoas se melhora o país?

Eu acho que sim, mas não vamos melhorar as pessoas, o país é este.

Qual é a chave?

Não tenho chave. Acho que é melhorar as pessoas e melhorar o comportamento dos partidos, com certeza. Agora, o passo a seguir é que tenho dúvidas que seja possível. Imagine que os partidos que nós temos a, b, c, d, e mudavam para f, x, y e z, seria diferente? As pessoas eram as mesmas. Por exemplo, a Itália mudou. E Itália, todos os partidos históricos que vieram da II Guerra Mundial desapareceram todos, agora há outros. Mas a vida política italiana não mudou muito. Se calhar as pessoas são as mesmas. Mas há aqui uma necessidade de modificação de procedimentos. Eu creio que Portugal só tem reagido quando está à beira do abismo e a população, nesse aspecto, é muito madura. E tem, ou tinha, que não sei se ainda será assim, hábitos de uma vida muito sofrida de dificuldades e em que aguentava muita coisa.

O que mudou então?

O período depois de 1976 aumentou muito as expectativas, e o que acontece é que vivemos muito melhor mas sem ter uma capacidade produtiva correspondente: estamos a viver acima das nossas possibilidades, como toda a gente anda a dizer. Mas também vivemos acima das nossas possibilidades porque não produzimos em condições e porque, pergunto, e gostava que alguém me desse a resposta, onde é que estão os fundos que vieram da CEE? Porque esses fundos foram mal empregues: fundos para formação, fundos para várias actividades, onde é que esses fundos estão? Devem estar em contas bancárias com certeza.

Noutro plano, o sector da Defesa não foi excepção este ano nos cortes motivados pela crise. Qual a sua opinião sobre os efeitos práticos nos salários e na operacionalidade das forças armadas?

Os cortes, creio que há uma enorme falta de preparação na maior parte dos responsáveis nas questões de segurança e defesa: eles fazem o 'on job training' e isso não se pode fazer. São coisas que se aprendem. É uma base conceptual e temos que perceber duas coisas: primeiro perceber o mundo e que está a mudar muito. E depois, perceber o que é o país e o que quero do país em termos de segurança. Tenho que perceber o mundo e o país, e aqui as forças armadas não podem ficar fora dessas restrições orçamentais. Mas são um bocadinho máquinas ou estruturas que, a partir de certo número de limitações, podem desabar.

Qual acha que é o caminho ideal a seguir?

Não sabemos o que será o futuro da segurança inter-europeia. E as guerras dos séculos XIX e XX, neste momento não se colocam. Hoje há um outro grande problema que é o das ameaças trans-nacionais, como é o crime organizado e o terrorismo internacional, o que dá mais importância às forças de segurança e necessita que as forças armadas, em caso de grandes calamidades, dêem esse grande reforço às forças de segurança. E no âmbito desses problemas novos também há o problema da desregulação do clima: uma coisa gravíssima como nunca aconteceu. E portanto aí, é também um problema onde as forças armadas reforçam. Há dois casos relativamente recentes: primeiro a tragédia que aconteceu na Madeira [com as enxurradas de 20 de Fevereiro de 2010]: quem deu todo o apoio foi o Exército e a Marinha. Depois, esta cimeira [da NATO em Lisboa, em 19 e 20 de Novembro de 2010] que tivemos aqui. É evidente que é um problema de segurança, mas reforçado pelas forças armadas: o espaço aéreo e o espaço marítimo estavam todos vigiados e o exército tinha montado um sistema de segurança anti-aérea de todo o país. Portanto, nós fazemos parte de um 'puzzle' em que as peças têm que encaixar umas nas outras, mas também nos dão responsabilidades. Temos que responder a estes requisitos das instituições como a NATO e a ONU de que fazemos parte e não podemos falhar.

Tem havido algumas falhas nesse percurso?

Não temos falhado, fundamentalmente por duas razões: porque temos tido uma intervenção internacional muito grande, para aqui e para acolá, etc. Há pessoas que não percebem, mas isso dá-nos estatuto internacional e respeitabilidade. Por outro lado, a preparação do nosso pessoal, que para onde vai, faz bem. Eu era comandante operacional no exército em 1998/99 e antes, como segundo comandante, tinha estado a fazer a preparação das forças que íam para a Bósnia em 1996. Tivemos um desempenho absolutamente impecável. E mais: somos respeitados por todos os outros. O sector onde estava esse nosso batalhão em 1998 eram um sector de confrontação de etnias e de religiões: se estivesse lá outro país, que não quero dizer qual, daqueles que resolvem tudo à pancada e mal, aquilo tinha dado asneira. Talvez esteja nos nossos genes, e de toda a história que temos de contactos em todo o mundo, a capacidade de comunicar: eram bósnios, sérvios, croatas, ortodoxos, muçulmanos, e aquilo funcionava maravilhosamente. Estive em contacto com todas as entidades de que dependia o nosso batalhão - havia um comando italiano em Sarajevo, uma divisão de comando francês em Mostar, além da SFOR, com um general americano - e tudo aquilo era uma força de qualidade. De tanta qualidade que, quando um comando dá essas garantias, passa a ser reserva. E as nossas forças passaram a ser reserva docomando da SFOR. E isto passa-se também com as nossas forças de segurança. Quando o Sérgio Vieira de Mello [antigo responsável da ONU, morto num atentado em Bagdade, em Agosto de 2003] estava em Timor e há uma substituição da Polícia Militar em Díli, ele quis levar portugueses e foi para lá a GNR.

E tudo isso tem origem em quê?

Tem a ver com a boa formação, visível em várias áreas e que ultrapassa muitas vezes a nossa dimensão e proporção. E dá-nos estatuto e respeitabilidade. Mas também é preciso perceber como o Governo percebe, o Presidente da República, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, que é um grande ministro, que isto é a nossa política externa. A área de maior sucesso na política externa em África, com os países da lusofonia, é a cooperação técnico-militar e técnico-policial. Nós estamos a formar polícias e militares e a construir os quartéis e o sistema de alimentação. O que acontece é que essas missões a que chamam agora de apoio de paz, foi muito o que nós fizemos na guerra do Ultramar. Independentemente do combate, havia essa questão do 'know-how' antigo.

E como prejudicam tudo isso as actuais limitações financeiras?

Isto está a atingir os mínimos. Por outro lado, o serviço militar obrigatório fazia grande parte da integração e da educação. E aquilo que o deveria substituir [o serviço militar obrigatório] não tem sido feliz, a educação não tem sido feliz, a televisão não é um modo de educação, bem... o que temos é um sistema profissional e que tem efectivos que respondem a compromissos internacionais. Quando existe essa redução orçamental, a nossa capacidade de intervenção é reduzida. Por exemplo a Marinha e Força Aérea são essencialmente equipamentos, enlatados que já estão feitos: o navio já tem aquele formato e o avião também. Precisa daquele pessoal e não pode ter menos do que aquilo. O Exército já é diferente, pode-se montar de várias maneiras, em módulos, onde um homem é importante: não só a máquina mas o homem. Portanto, não vejo que a Força Aérea e a Marinha possam reduzir mais, porque a dada altura estão nos limites. O Exército também é muito sofisticado, embora o homem seja importante: se se baixar muito a nossa capacidade de intervenção, quer no interior quer no exterior, diminui. Uma das coisa quando havia o serviço militar obrigatório era dar muito apoio aos bombeiros, quer na prevenção quer na fase final dos fogos. Hoje isso está muito limitado, porque a capacidade está muito limitada, como acontece na construção de estradas. Fazer uma estrada ou uma ponte onde ninguém vai, isso também é uma política de Estado.

Qual é o papel mais importanet da Defesa e da Segurança em Portugal?

Segurança é importante: segurança, bem estar, progresso. Julgo que o Governo e o Presidente da República estão conscientes de que há limites abaixo dos quais não se pode baixar [o investimento], mas dito isto as forças armadas não podem ficar fora deste esforço de contenção orçamental. O que digo no livro, e está na contra-capa, é que esta situação era previsível e evitável. Isto há dez anos que já se sabia. Portanto, continuando a gastar sempre acima das nossas capacidades, é impossível. Quem manda é quem paga e há que fazer aqui uma grande mudança e julgo que é bom que nós aprendamos. Os antigos presidentes da República têm tido intervenções úteis a esse respeito. Mas são intervenções de conselhos e de experiência, não podem ir muito mais longe do que isso. (D.E)

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