22 de fevereiro de 2015

Uma alemã nas mãos dos portugueses

Dentro de poucos anos é provável que os recrutas deixem de cantar em uníssono, durante a instrução militar, os seguintes versos: "Ó minha rica mãezinha,/ Olha o que a tropa me fez./ Tirou-me a namorada./ E deu-me uma G3." No mínimo dos mínimos, o segundo verso terá de ser alterado para que possa rimar com o nome de outra espingarda automática.

A arma de fogo de origem alemã, ícone da Guerra do Ultramar e da Revolução de 25 de Abril de 1974, usada por sucessivas gerações de portugueses, do início dos anos 60 até hoje, tem os dias contados. Durante este ano, o Ministério da Defesa vai lançar um concurso internacional destinado à aquisição de 10 225 espingardas que vão equipar o Exército.

Segundo a lei de Programação Militar, que a Assembleia da República aprovou na semana passada, a substituta da G3 será comprada entre 2015 e 2016, implicando uma despesa de 41 milhões de euros. Mesmo assim, este investimento é bastante inferior ao previsto na anterior lei de Programação Militar. Seriam 78 milhões de euros para comprar 40 mil espingardas, mas afinal a nova arma só ficará ao serviço do Exército, deixando de fora a Força Aérea e a Marinha. 

Enquanto tal dia não chega, a G3 continua a arma individual dos soldados integrados nas forças que fazem missões no exterior. Pesa 4,1 quilos, a que acrescem 600 gramas quando se junta o carregador com balas de calibre 7,62 mm, tem 1o2 centímetros e começou a chegar às mãos dos portugueses em 1961. 

FAZER AS CONTAS

A espingarda automática, que pode já ter sido empunhada por três gerações de algumas famílias, é uma das constantes das últimas décadas, ainda que o fim do serviço militar obrigatório tenha feito disparar o número de homens que nunca pegaram numa, ao mesmo tempo que algumas mulheres passavam a ter a oportunidade de o fazer. O Exército não avança quantos portugueses usaram a G3 ao longo dos anos, mas adianta que "todos os militares que prestaram e/ou prestam serviço nas fileiras, receberam instrução para manusear e manter esta arma ligeira".

"É só fazer as contas", disse à ‘Domingo’ o general na reserva Loureiro dos Santos, que teve a sua primeira G3 numa comissão de serviço em Angola, de 1962 a 1965. "Tivemos permanentemente uma média de 150 mil soldados em operações, que eram rendidos de dois em dois anos. Fazendo a conta a metade, anda perto de um milhão durante a Guerra de África. De lá para cá, talvez mais um milhão, pois entretanto passaram 40 anos", calcula o ex-chefe de Estado-Maior do Exército.

Apesar de a Guerra do Ultramar ter sido a prova de fogo da G3, criada anos antes pela Heckler & Koch, uma empresa da então República Federal Alemã, Loureiro dos Santos foi para Angola – após Salazar responder aos massacres de fazendeiros e nativos com o célebre discurso do "depressa e em força" – com uma arma de fogo também germânica, mas muito mais arcaica. "Era uma Mauser, de finais da I Guerra Mundial, com uma pequena adaptação", recorda, exemplificando o grau de impreparação das Forças Armadas aquando do início do conflito.

Quando o coronel na reserva Carlos Matos Gomes fez a primeira das suas três comissões nos Comandos, em Moçambique, já a G3 era produzida em Portugal, na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa. "Na Academia Militar estudávamos a G3, mas não a usávamos, pois estavam quase todas na guerra. Quando cheguei a Moçambique, no lago Niassa, recebi a minha primeira G3 para ir combater", recorda o historiador, autor de diversos romances passados na Guerra do Ultramar, sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz.

Pouco tempo demorou até aperceber-se da ligação afectiva que os combatentes estabeleciam com a espingarda automática. "Aquilo que se ensinava aos soldados é que a G3 era a namorada deles. Nas operações tinham sempre a arma à mão, e mesmo dentro da caserna o normal era terem-na, pendurada pela bandoleira, aos pés da cama. Em caso de necessidade, era a defesa. Era uma companhia, quase um prolongamento do corpo", diz Carlos Matos Gomes.

Para memória futura ficaram as fotos que ex-combatentes tiraram à espingarda automática que lhes fora entregue, antes de a devolverem, no final da comissão, com dizeres como "Devo-te a vida", escritos com balas.

QUALIDADES E DEFEITOS 

Ter a mesma arma a equipar o Exército ao longo de meio século, apenas com algumas adaptações, é uma situação rara num país fundador da NATO – estatuto que não impediu que os EUA de John Fitzgerald Kennedy tivessem impedido a venda de armas ao regime de Salazar –, mas a explicação é muito simples. "A partir de certa altura havia armas melhores do que a G3, em peso e em cadência de tiro, e vários países começaram a comprá-las. Nós não comprámos e sabe-se muito bem porquê. Tivemos dificuldades financeiras e foi considerado que havia outras prioridades", explica Loureiro dos Santos.

Mesmo a anunciada substituição da G3 é vista como insuficiente pelo general na reserva. Defendendo que "não devemos comprar um número de armas exactamente igual ao número de militares que temos nas nossas fileiras" e salientando que é necessário acautelar "ameaças mais perigosas" à segurança de Portugal, Loureiro dos Santos considera que seriam necessárias 50 a 60 mil novas espingardas automáticas, englobando os efectivos da Força Aérea e da Marinha. 

Por seu lado, Carlos Matos Gomes realça que mesmo nos tempos da Guerra Colonial a G3 já era desajustada para algumas operações. "Era muito comprida e relativamente pesada, pelo que era difícil utilizá-la dentro dos helicópteros ou nos espaços mais confinados, como quando começaram a aparecer as Chaimites."

No outro prato da balança, o co autor de ‘Os Anos da Guerra Colonial’ destaca a simplicidade da espingarda automática criada por engenheiros de armamento alemães que foram trabalhar para Espanha após o fim da II Guerra Mundial. "A G3 era uma arma muito simples de montar e de desmontar. Os militares habituaram-se a ela, e utilizavam-na com muita eficácia", garante, apesar de "perder claramente, em termos de maleabilidade, de peso e até de fiabilidade, para a arma dos movimentos de libertação".

A metralhadora Kalashnikov, de fabrico soviético, era mais leve, menos sujeita a avarias e mais curta. "Nas forças especiais, sempre que podíamos, usávamos as Kalashnikov que apanhávamos aos guerrilheiros", admite Carlos Matos Gomes. Loureiro dos Santos acrescenta uma qualidade da G3 em relação à ‘concorrência’: a capacidade de derrube, pois as rajadas tinham um efeito muito mais letal.

E Carlos Matos Gomes recorda soldados que "faziam malabarismo com uma só mão, mesmo sendo uma arma muito comprida". Histórias de cinco décadas em que os portugueses tiveram nas mãos uma arma cujo ‘G’ vem de ‘Gewehr’, que é "espingarda" em alemão. (CM)

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