1 de março de 2015

Descolonização: "O terror do batalhão em cuecas"

Moxico, em Angola. Um batalhão chega ao fim da comissão. Vai viajar em breve para Lisboa. Como tal há que proceder ao deslocamento dos homens até Luanda. A viagem é feita de comboio, através da linha de Benguela. Mas, pouco antes de Nova Lisboa. o comboio é interceptado por forças das UNITA.

O batalhão deixa-se desarmar. Depois de desarmados são também obrigados a entregar tudo o que levavam consigo. Fardas incluídas. Acabam em cuecas.

Para os políticos e chefias militares que falharam no seu imaginário de libertadores, o "batalhão em cuecas" funcionou como derradeiro argumento desculpabilizador. Nas mãos daqueles que em 1974 e 1975 aplicavam à prossecução dos seus objectivos ideológicos o que tinham aprendido nos manuais de acção psicológica, o "batalhão em cuecas" foi uma notável peça táctica.

Falar de descolonização implica falar de militares. E nos anos de 1974 e 1975 falar das Forças Armadas portuguesas implica falar do “batalhão em cuecas”. Ou seja dos sons, das imagens e dos testemunhos sobre as humilhações a que, na Guiné, Moçambique e Angola, estavam ou poderiam vir a estar sujeitas algumas unidades militares.

Entre as explicações que os militares e líderes políticos com responsabilidades na descolonização têm dado para a forma como esta foi feita, conta-se invariavelmente a referência à influência dos jovens radicais que gritavam em Lisboa “Nem mais um soldado para as colónias”. Mas na verdade o problema não foram estas manifestações, por mais que elas tivessem irritado as chefias militares.

O problema é que, como em Lisboa bem se sabia, seria até preferível que os soldados já não partissem para as colónias: quebrada a cadeia hierárquica de comando, os militares protagonizam em África episódios que, para bem das Forças Armadas, Portugal não devia conhecer. Para os políticos e chefias militares que falharam no seu imaginário de libertadores, o “batalhão em cuecas” funcionou como derradeiro argumento desculpabilizador. Nas mãos daqueles que em 1974 e 1975 aplicavam à prossecução dos seus objectivos ideológicos o que tinham aprendido nos manuais militares de acção psicológica, o “batalhão em cuecas” foi uma notável peça táctica.

Depois de terem querido manter o império e feito cair o regime, as Forças Armadas portuguesas começavam um combate que as levaria a uma sucessão de golpes e contra-golpes. E nesse combate valeu quase tudo. De Cabinda em Angola, a Omar em Moçambique, após o 25 de Abril de 1974, as Forças Armadas portuguesas lutaram impiedosamente. Contra si mesmas.

2 de Agosto de 1974, Tanzânia, Dar-es-Salam, Hotel Kilimanjaro, quarto 602.

No gravador começa a rodar a cassete que Samora Machel fizera questão, minutos antes, que a delegação ida de Lisboa ouvisse: “E agora oiçam isto…” – declarou o líder da Frelimo sabendo de antemão que aquilo que se ia ouvir não deixaria os seus interlocutores indiferentes.

São vozes, vozes em português. Vozes que se identificam como sendo de militares portugueses, colocados numa base situada no norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia, a Base de Omar ou Nametil. À medida que a cassete avança o constrangimento entre a delegação que representa Portugal cresce:

– Vocês quem são? (Veio a identificação.)
– E querem entregar-se porquê?
– Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!

Os vivas à Frelimo repetem-se.

O comandante Almeida e Costa, presente a esta reunião, recorda que Melo Antunes, que chefiava a delegação que viajara de Lisboa para se encontrar com a Frelimo em Dar-es-Salam, se levanta e desabafa: “Merda, assim não se pode fazer nada”.*

Este encontro que começou a 31 de Julho de 1974, em Dar-es-Salam, entre uma delegação ida de Lisboa e a Frelimo, está inquinado desde o princípio. Em “País sem Rumo”, Spínola vai afirmar que ele decorreu sem a sua autorização ou sequer conhecimento:

“O Major Melo Antunes, então Ministro sem Pasta, deslocou-se, sem meu conhecimento, a Dar-es-Salam para, à margem de qualquer política concertada com a Presidência da República ou com os Ministros dos Negócios Estrangeiros [Mário Soares] e da Coor­denação Interterritorial [Almeida Santos], estabelecer um plano de entrega de Moçambique à Frelimo, plano que viria a concre­tizar-se numa proposta inicial a que ele desde logo aderiu e que representava a abdicação total perante o inimigo por nós próprios tornado poderoso.”

O comandante Almeida e Costa, que acompanhou Melo Antunes a esta reunião, declara que este estava autorizado a aceitar tudo, desde que o período de transição fosse de quatro a cinco anos e que o respectivo governo tivesse três quartos de portugueses e um quarto de elementos da Frelimo.

Já Melo Antunes, na entrevista que concedeu ao Expresso em Fevereiro de 1979, ou seja pouco depois da saída do livro de Spínola “País sem Rumo”, garante ter tido a “plena concordância do general Spínola, general Costa Gomes (que na mesma altura fez a proposta da minha nomeação para Alto-Comissário em Moçambique, proposta que foi aceite) e primeiro-ministro Vasco Gonçalves e, pelo menos, o conhecimento e acordo do Dr. Almeida Santos e Dr. Mário Soares.”

Melo Antunes esclareceu ainda nessa entrevista ao Expresso que o mandato que levava de Spínola dava como aceite por Portugal o princípio da transferência de poderes para a Frelimo. Melo Antunes detalha que “o general Spínola adiantou a ideia da assinatura de um protocolo secreto no qual aquele movimento seria reconhecido como representante legítimo do povo de Moçambique, sem prejuízo das negociações que se seguiram com a Frelimo (erigida, assim, e de facto, em interlocutor único) com vista à transferência de poderes.” O comandante Almeida e Costa, que acompanhou Melo Antunes a esta reunião, declara que este estava autorizado a aceitar tudo, desde que o período de transição fosse de quatro a cinco anos e que o respectivo governo tivesse três quartos de portugueses e um quarto de elementos da Frelimo.

Menos discutível é a ligeireza com que os negociadores entendiam e preparavam estes encontros. Por exemplo, e independentemente de estar ou não mandatado por Spínola, Melo Antunes, na referida entrevista ao Expresso, declara esta coisa extraordinária sobre o acordo que firmou com a Frelimo em Dar-es-Salam, no início de Agosto:

“Nesta cidade decorreram, entre 30/7/74 e 2/2/74, as difíceis conversações entre a delegação portuguesa e a delegação da Frelimo que conduziram à elaboração de um documento contendo os conceitos básicos e as linhas mestras do acordo a negociar, formalmente, caso Portugal concordasse em que este documento era uma base de partida aceitável para a continuação do diálogo. Uma vez que este encontro de Dar-es-Salam havia permanecido secreto, mantinha-se a margem de negociação de ambas as partes, caso Portugal viesse a considerar inaceitável a posição de partida de Dar-es-Salam.”

Isto como se alguma vez fosse possível para Portugal voltar atrás no reconhecimento da Frelimo como interlocutor único depois de uma delegação sua ter subscrito tal documento! É difícil acreditar que um homem como Melo Antunes, provavelmente o mais culto dos militares do MFA, alguma vez tivesse achado essa hipótese verosímil.

Quase inverosímil também é o amadorismo que caracterizou a preparação desta reunião, a não ser que em Lisboa se entendesse por preparar bem uma reunião escolher as piores condições para as equipas que se enviavam a negociar com os movimentos independentistas: na capital da Tanzânia, os diversos membros da delegação portuguesa ficam alojados em diferentes hotéis, o que à dificuldade de comunicação com Lisboa acrescenta a quase impossibilidade de os membros da delegação portuguesa comunicarem entre si (a escolha por Portugal, no ano de 1974, dos locais e de condições técnicas e políticas para as suas delegações no que respeita à descolonização faz de Portugal um case study da diplomacia à escala mundial: dificilmente se arranjaria pior).

Neste enquadramento em que já de si seria dificílimo à delegação portuguesa fazer fosse o que fosse, os sons da rendição dos militares capturados em Omar teriam sido usados como forma de pressão sobre a delegação chefiada por Melo Antunes.

De facto, como concluiu Melo Antunes: assim não se podia fazer nada. Ou melhor dizendo, a delegação portuguesa ficava sem poder fazer nada. Ou com uma justificação para o que se propunha fazer. Seja como for ou pelo que for, a cassete que soa no quarto 602 do Hotel Kilimanjaro vai desempenhar um papel ilusoriamente crucial na apresentação, como um facto fatalmente consumado, da Frelimo enquanto interlocutor único no processo de independência de Moçambique.

No quarto 602, o gravador continuava a fazer ouvir as frases pronunciadas pelos militares portugueses enquanto se rendiam: "Pega lá a minha arma, meu irmão”. A companhia forma. Os vivas à Frelimo continuam.

O que aquela cassete fazia ouvir naquele quarto era a rendição, há aproximadamente 24 horas, dos 140 militares portugueses que até ao da 1 de Agosto de 1974 estavam instalados no aquartelamento de Omar ou Nametil. A avaliar pelo que se ouvia na cassete, a Frelimo conseguira capturar uma companhia inteira sem disparar um único tiro. Mas se as armas não chegaram a ser empunhadas, o mesmo não se pode dizer dos gravadores e da máquina de filmar: a rendição da Base Omar fora gravada e filmada. E as filmagens e gravações continuarão durante a viagem que, ao longo de vários dias, os militares portugueses capturados fazem até chegar à Tanzânia.

No quarto 602, o gravador continuava a fazer ouvir as frases pronunciadas pelos militares portugueses enquanto se rendiam: “Pega lá a minha arma, meu irmão”. A companhia forma. Os vivas à Frelimo continuam.

A apresentação da cassete fora o culminar de um crescendo de tensão para a delegação portuguesa: “O Samora Machel, no segundo dia, da parte da tarde, começa a sessão trazendo um molho de telegramas de militares, de milicianos do Quartel-General de Nampula, cartas retiradas de Nampula, etc., e diz assim: «Vejam o apoio que nós temos.» E começa a citar nomes, perante nós, atónitos, porque as condições em que se estava a negociar eram já extremamente difíceis para nós.” – recorda Almeida e Costa que, ao lado de Melo Antunes, participava nesta reunião.

Para que não restassem dúvidas sobre a natureza do que estava a mostrar, Samora Machel exibe ainda um mapa que revelava o apoio dado por Portugal à Rodésia para esta atacar as bases da ZANU, de Robert Mugabe. Ora acontece que esse mapa e as informações nele inscritas eram considerados ultra-secretos e tinham de ter sido fornecidos a Samora Machel por uma fonte militar portuguesa cujas funções e patente lhe permitissem ter acesso àquele tipo de informação.

A cassete com os militares capturados em Omar a dizerem aos guerrilheiros da Frelimo “vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!” fizera o xeque-mate à delegação portuguesa num jogo em que a Frelimo se tornava senhora do tabuleiro.

Como reagiriam os portugueses, fossem eles civis ou militares a tudo isto? E sobretudo, como passariam os portugueses a olhar as suas Forças Armadas? Note-se que muito do que estava a acontecer no Verão e Outono de 1974 em Angola, Moçambique, Guiné ou Cabo Verde não era noticiado. As pesadas multas e demais medidas aplicadas pela Comissão Ad-Hoc para o Controlo da Imprensa, Rádio, Televisão, Teatro e Cinema centravam-se particularmente nas notícias sobre o que estava a acontecer no então Ultramar.

A isto junta-se a censura praticada pelas autoridades militares perante a absoluta indiferença de Portugal e do mundo: na Guiné os militares ordenavam a suspensão das reportagens de Roby Amorim unicamente porque estas relatavam a decisão de vários oficiais das Forças Armadas Portuguesas de entregar aquartelamentos ao PAIGC. Em Moçambique, no mês de Julho, foi expulso o jornalista John Bruce Edlin porque, diziam as autoridades portuguesas, este jornalista fundamentava “a maior parte das suas notícias em boatos e em opiniões particulares, deturpando, assim, a verdadeira imagem da vida interna em Moçambique”.

Ao mesmo tempo, o Quartel-General de Nampula difundia uma circular anunciando que o cessar-fogo seria assinado em breve e proibia a publicação de um telex da Reuters que divulgava a afirmação de Samora Machel de que “não haveria qualquer cessar-fogo enquanto o Exército Português não fosse completamente derrotado”. Por fim não se pode esquecer, sobretudo nas notícias sobre África, a autocensura praticada pelos jornalistas em tudo o que fosse menos favorável ao MFA, que em 1974 era invariavelmente apresentado como um movimento imbuído dos mais puros ideais para as então colónias.

Na prática, para lá das hipérboles retóricas sobre a libertação e o futuro radioso que esperava África, não se detalham as decisões tomadas pelas estruturas do MFA em Angola, Cabo-Verde, Guiné, decisões essas que logo desde o final de Abril de 1974 condicionavam tudo aquilo que futuramente se viesse a negociar. E quanto mais a situação se agravava do ponto de vista da segurança, mais dependentes ficavam as redacções das lacónicas notas oficiosas emanadas pelos militares.

Em Moçambique, semanas antes da rendição da Base Omar, os sinais dessa espécie de tragédia anunciada mas não noticiada iam-se acumulando: as estruturas locais do MFA lançam por sua iniciativa anúncios de cessar-fogo, militares participam em acções de propaganda da Frelimo e vêem-se colunas de viaturas mili­tares em retirada dos seus quartéis com soldados empunhando cartazes onde exigem o regresso imediato à Metrópole.Mas não só. Spínola em “País sem rumo” faz um breve resumo das informações que nesse mês de Julho de 1974 lhe chegavam de alguns quartéis de Moçambique:

“Algumas unidades negaram-se terminante­mente a cumprir quaisquer missões operacionais, che­gando ao extremo de numa companhia o comandante ter sido preso por sargentos e soldados, e de estes terem resolvido abandonar a localidade que ocupavam; idêntica atitude fora tomada por outra unidade que, antecipando-se à ordem de retirada, fez a evacuação em táxis aéreos; e outras ainda, embora permanecessem nos locais superiormente determinados, transformaram-se em centros de propaganda anti-portuguesa, afixando nos seus aquartelamentos e imediações cartazes atentatórios da digni­dade das Forças Armadas, instigando à entrega imediata e sem condições de Moçambique à Frelimo. Unidades acabadas de chegar da Metrópole, altamente politizadas, recusaram-se a «entrar em sector» e incitavam as unidades do interior a abandonar as localidades e posições que defendiam, algumas havendo que foram intimadas pela força a render as unidades em final de comissão; os quadros e soldados do Comando de um Batalhão sediado em Vila Paiva de Andrade prenderam o Comandante e ameaçaram abatê-lo se este os obrigasse a sair em serviço operacional antes de o cessar-fogo ser oficialmente anunciado”.

A nota acabava a alertar que a “publicidade que se dá ao incidente visa, sobretudo, prevenir a opinião pública contra possíveis especulações jornalísticas de forças reaccionárias ou extremistas.” Como de costume, agitava-se o espantalho das forças reaccionárias para iludir a realidade.

A 23 de Julho de 1974, proveniente do Governo-Geral de Moçambique em que Henrique Soares de Melo já se encontrava demissionário, chega à Presidência da República um telegrama que dá conta de como estes incidentes são capitalizados, quando não organizados, por aqueles que pretendem não só que se negoceie rapidamente a independência de Moçambique, mas também que esta seja negociada directa e unicamente com a Frelimo:

“Realizou-se em Nampula reunião das comissões regionais do MFA tendo comissões Cabo Delgado e Tete anunciado que tropas estacionadas referidos distritos imporão cessar-fogo unilateral se até corrente mês não for estabelecido acordo global cessar-fogo com Frelimo, desconhecendo-se de momento forma como se processará esse propósito; pessoal helicópteros nega-se fazer reabastecimentos tropas terrestres a partir primeiros dias próximo mês. Face actual comportamento Forças Armadas Moçambique, Frelimo está incitar mesmas à disciplina por considerar indispensável sua coesão para manutenção ordem pública a seguir ao cessar-fogo”

A terminar o Governo-Geral de Moçambique conclui:

“Frelimo mantém actividade operacional elevada não aceitando cessar-fogo parcial embora um ou outro caso tenha surgido. Considero situação extremamente grave admitindo-se rápido colapso militar face comportamento referido o que torna imperativa solução cessar-fogo imediato. Continuarei manter Vexa permanentemente informado.”

E é neste quadro de crescimento da tensão dentro das Forças Armadas que surge a rendição de Omar. Os portugueses ficam a saber do sucedido através de uma vaga e muito eufemística nota oficiosa divulgada a 2 de Agosto que dava conta do que os jornalistas designam como “Comportamento desleal de elementos da Frelimo que, sob pretexto de conversações pacíficas, aprisionaram a guarnição portuguesa de um quartel junto ao rio Rovuma.” A nota acabava a alertar que a “publicidade que se dá ao incidente visa, sobretudo, prevenir a opinião pública contra possíveis especulações jornalísticas de forças reaccionárias ou extremistas.” Como de costume, agitava-se o espantalho das forças reaccionárias para iludir a realidade.

Nem sequer as evidentes contradições nas notícias que transcrevem esta nota oficiosa, ou o número cada vez mais mirambolante de guerilheiros que os militares portugueses dizem ter cercado a base, geram qualquer curiosidade entre os jornalistas: por exemplo, na única e breve notícia que a RTP dedica à captura da Base Omar e que foi lida no Telejornal das 21 horas do dia 3 de Agosto dá-se conta que aquela guarnição “nos últimos tempos tinha repelido muitos ataques”, situação absolutamente contraditória com as notícias quase diárias sobre o cessar-fogo que se registava em Moçambique, cessar-fogo esse que segundo os jornalistas que o noticiavam só faltava ser reconhecido por Lisboa.

Na própria noite em que a guarnição de Omar é capturada, o Rádio Club de Moçambique, na sua rubrica “Jornal Sonoro”, noticiava um cessar-fogo na zona de Mueda entre elementos da Frelimo e do Exército Português. No dia 1 de Agosto o Diário de Lisboa publica uma notícia proveniente do seu correspondente em Moçambique que afiançava: “O cessar-fogo em Moçambique é já um facto consumado. Moçambique inteiro interroga-se sobre o que se passa nas altas esferas políticas quanto ao cessar-fogo oficial, já que, apesar, do silêncio das autoridades portuguesas e dos dirigentes da Frelimo, o cessar-fogo no terreno está já generalizado em todas as frentes de combate moçambicanas.” Entre as zonas onde o sonhador correspondente do Diário de Lisboa garantia já vigorar o facto consumado do cessar-fogo contava-se precisamente a da Base Omar.

Omar: quem traiu quem?

Estes anúncios de cessar-fogo, que se inseriam numa táctica política mas que em nada correspondiam à realidade no terreno, podem explicar as circunstâncias e as narrativas posteriores sobre a forma como os homens da Base Omar se deixaram capturar.

Dias antes do incidente, a companhia de Omar recebera a mensagem 7165/P da 5.a Repartição/Comando do Sector B: “Devem todos os comandos tentar criar condições locais passíveis de conduzir ao cessar-fogo na sua ZA. Para o efeito lançarão campanhas de panfletos, cartas deixadas no mato, e acima de tudo servir-se como intermediários, bem como todos os meios achados convenientes. Só deve ser prometido respeito e confiança mútuos e desejo para a paz. Todos os militares serão esclarecidos destes acontecimentos e finalidades, tendo em vista evitar quaisquer incidentes ou atitudes inconvenientes e todos os resultados alcançados serão comunicados a este Comando”.

Tendo em conta esta e outras mensagens de idêntico teor, nomeadamente as emanadas do Comando Militar de Mocímboa do Rovuma, entende-se melhor a forma como a companhia estacionada em Omar explica ter reagido quando, na madrugada do dia 1 de Agosto de 1974, ouviu, provenientes da orla da mata, vozes ampliadas por megafone, dizendo:

“Atenção aquartelamento de Omar, nós não estamos contra vocês, lutamos contra o fascismo e o colonialismo, e esses terminaram no dia 25 de Abril. Queremos falar com vocês. Mandem um mensageiro à pista, pois nós estamos sem armas. Queremos apenas falar convosco, não queremos mais derramamento de sangue.” – recorda Costa Monteiro, então comandante interino da Base de Omar, no testemunho que deu em Agosto de 2014 ao Jornal dos Combatentes do Ultramar.

"No mesmo momento em que a força toma o quartel, há uma outra força emboscada na orla da mata da pista que cerca todo o pessoal que nela se encontrava. A partir daí não foi possível qualquer reacção.”

Perante esta declaração, explica Costa Monteiro, um soldado ofereceu-se para ir à pista como mensageiro: “todo o restante pessoal continuou nas valas e em diversas posições de fogo. Quando o referido mensageiro ia a chegar à pista, novas vozes de megafone se ouviram, pedindo para que o Comandante viesse também à pista. Perante isto, o comandante do aquartelamento, alferes miliciano José Carlos da Silva e Costa Monteiro, acedeu em ir também à pista juntamente com o referido soldado Piedade.

Surgiram então cerca de 8 a 10 indivíduos desarmados, munidos com gravadores portáteis, máquinas de filmar e máquinas fotográficas. Quando o alferes Monteiro se encontrava a falar com o comandante deste pequena força ele repetiu as palavras já ditas pelo megafone e pedia para falar com os soldados da Companhia na pista. Perante esta insistência, o comandante do aquartelamento de Omar alvitrou que poderia entrar e falar com a Companhia dentro do aquartelamento, o que lhe foi contestado, alegando medo de qualquer reacção das nossas tropas ou da força aérea.

Perante isto, e como não se notava qualquer presença de indivíduos armados, foi aceite que parte da Companhia fosse para a pista. Ficaram nas posições as secções de obuses 8,8 morteiros e postos de sentinela.

Quando se encontravam na pista, houve uma força de cerca de 100 indivíduos, que pela porta de armas traseira, que dava saída para a lixeira, entraram de assalto, tomando as nossas posições dentro do quartel. A reacção das secções de obus não era possível, e como tal, a força que entrou obrigou o pessoal das restantes posições a abandonar e sair. No mesmo momento em que a força toma o quartel, há uma outra força emboscada na orla da mata da pista que cerca todo o pessoal que nela se encontrava.

A partir daí não foi possível qualquer reacção.”

Dos 140 homens estacionados em Omar, apenas três conseguem fugir. Os restantes foram aprisionados.

“The battle that was won without a shot”

Quando a cassete deixa de se ouvir no quarto 602 do Hotel Kilimanjaro outro som se impõe.

É o do bater de uma máquina de escrever que a delegação da Frelimo para ali transporta. É uma IBM de esfera. A cada característico toque seu alinham-se no papel os termos da vitória política que a Frelimo acabava de obter.

Às 5 horas da madrugada do dia 1 de Agosto de 1974 a Frelimo capturou a guarnição de Omar sem disparar um tiro. A 2 de Agosto em Dar-se-Salam a Frelimo começou a ganhar a guerra sem ter sequer necessidade de travar a batalha da negociação: consegue ser reconhecida como interlocutor único no processo de transição para a independência de Moçambique.

Mas a captura de Omar estava longe de esgotada como elemento de estratégia política. Enquanto os homens da Companhia de Omar são levados em direcção à Tanzânia, o registo sonoro e fotográfico da sua captura faz também o seu caminho. Material de propaganda da Frelimo sob o título “The battle that was won without a shot” mostra nos dias seguintes fotografias de alguns dos militares capturados. Sob as fotos vem a respectiva identificação, a patente e extensas declarações de apoio desses mesmos militares à Frelimo.

Jornalistas e fotógrafos internacionais são convidados a ir à Tanzânia ver os militares portugueses capturados em Omar. Costa Monteiro declarará anos mais tarde que nem ele nem os seus homens foram maltratados. Confirma que, a meio da viagem entre Moçambique e a Tanzânia, as fardas do exército português que envergavam foram despidas para darem lugar às da Frelimo. Terá sido aliás com essas fardas que desfilaram em Dar-es-Salam em meados de Agosto diante dos chefes da Frelimo que terão convidado vários representantes da imprensa internacional para assistirem a esse momento simbólico da derrota de Portugal.

As reuniões no Buçaco com Spínola

E qual o destino da cassete que Samora Machel deu à delegação ida de Lisboa e que terá vindo para Portugal na bagagem de Melo Antunes depois de terminado o encontro de Dar-es-Salam?
Almeida e Costa, que estivera com Melo Antunes em Dar-es-Salam, fez em 2004 uma viva descrição no Diário de Notícias dessa ida ao Buçaco: “De regresso a Lisboa, Melo Antunes estava assustadíssimo com a ideia de ter de ir ao Buçaco e de ter de mostrar o memorando da Frelimo ao general Spínola. «E que não era nada daquilo que fora combinado».

Melo Antunes, na entrevista que dá ao Expresso em Fevereiro de 1979 e em que afirma que Spínola estava ao corrente do encontro com a Frelimo que o levou a Dar-es-Salam de 31 de Julho a 2 de Agosto, declara que, regressado a Portugal, se dirigiu imediatamente de helicóptero ao Buçaco onde teria dado conhecimento a Spínola “detalhadamente” da forma como tinham corrido as conversações. Sobre a cassete nem uma palavra.

Almeida e Costa, que estivera com Melo Antunes em Dar-es-Salam, fez em 2004 uma viva descrição no Diário de Notícias dessa ida ao Buçaco: “De regresso a Lisboa, Melo Antunes estava assustadíssimo com a ideia de ter de ir ao Buçaco e de ter de mostrar o memorando da Frelimo ao general Spínola. «E que não era nada daquilo que fora combinado».

Um nervosismo para o qual, ainda hoje, Almeida e Costa só encontra uma explicação. «Intelectualmente superior, corajoso e muito inteligente, Melo Antunes era também um militar. E mesmo ministro sem pasta, não deixava de ser um tenente-coronel que, naquela ocasião, se preparava para ir falar com um general. Sei que isto é muito subjectivo, mas é como eu vejo a situação».

É isso que explica a presença de Almeida Santos, «que tinha o condão de acalmar o general. Como Mário Soares». Melo Antunes recorre ao titular da Coordenação Interterritorial. Foram de helicóptero. Mas Spínola não reage. Limita-se a ler o memorando e a pedir que lhe deixem ficar um exemplar.” Também Almeida e Costa não faz qualquer referência à cassete neste encontro com Spínola.*

Ora tendo Almeida e Costa considerado que a apresentação da cassete marcou decisivamente a reunião, como deixa de a referir daí em diante? E como no meio de tantos detalhes sobre o encontro com Spínola não se refere à cassete?

Para lá da incógnita sobre o paradeiro da cassete – que sempre há-de aparecer! – há um outro problema e esse prende-se mesmo com a realização deste encontro. Almeida Santos nega peremptoriamente ter ido ao Buçaco com Melo Antunes. Como escreve no vol. 1 de Quase memórias “Não é também exacto que eu e Melo Antunes tenhamos ido ao Buçaco mostrar a Spínola o protocolo por aquele pré-negociado durante a sua primeira deslocação a Dar-es-Salam. Desconheço se Melo Antunes lá foi [ao Buçaco] sem mim.”

Aconteceu ou não esse encontro que, pelas agendas de Spínola e Melo Antunes, a ter tido lugar, ocorreu a 3 ou 4 de Agosto? A questão não é de modo algum irrelevante e não é por acaso que Almeida Santos faz questão de frisar que não esteve lá. Afinal se Spínola e Almeida Santos foram informados por Melo Antunes dos compromissos por si assumidos em Dar-es-Salam a 2 de Agosto tomaram conhecimento e implicitamente deram o seu aval ao princípio de acordo que Melo Antunes nesse dia estabelecera com a Frelimo.

Em resumo: Almeida Santos diz que não acompanhou Melo Antunes no encontro que este e Almeida e Costa dizem ter mantido com Spínola a 3 ou 4 de Agosto. Spínola nega que este encontro tenha acontecido. Já a cassete apresentado por Samora Machel a 2 de Agosto desaparece por um breve período.

Tenha ou não esse encontro acontecido a 3 ou 4 de Agosto, e independentemente de quem nele participou caso tenha existido, a cassete da rendição de Omar parece esquecida depois da sua estrepitosa entrada em cena no quarto 602 do Hotel Kilimanjaro. Curiosamente é noutro hotel, desta vez o Palace do Buçaco que voltamos a encontrar o rasto da cassete da rendição de Omar. Em que dia? 19 de Agosto.

Nesse dia 19 de Agosto, Melo Antunes, Mário Soares e Almeida Santos acabados de regressar de Dar-es-Salam chegam ao Buçaco de helicóptero.

Os três vão dar conta ao Presidente da República que aí se encontrava de férias do encontro que nos últimos dias mantiveram com a Frelimo. (A semelhança nos detalhes com o encontro que Melo Antunes e Almeida Costa dizem ter tido lugar a 3 ou 4 de Agosto com Spínola permite pensar que, independentemente de esse encontro se ter realizado, a descrição que dele fazem Melo Antunes e Almeida Costa é sim a deste outro encontro que teve lugar no dia 19).
Quando Mário Soares, Melo Antunes e Almeida Santos começam a negociar em Dar-es-Salam, o peso político da Frelimo multiplicara-se várias vezes, quer pela forma como decorrera o primeiro encontro que tivera lugar na capital tanzanianal, quer por aquilo que entretanto ocorrera em Moçambique.

Desta nova ronda negocial de Dar-es-Salam, e ao contrário do que aconteceu com a que tivera lugar de 31 de Julho a 2 de Agosto, foram chegando algumas breves notícias a Portugal: a 15 de Agosto sabe-se que Melo Antunes, Almeida Santos e Mário Soares haviam partido ao encontro da Frelimo, talvez em Lusaka (Zâmbia) ou em Dar-es-Salam (Tanzânia). A 16 de Agosto o noticiário da noite da RTP já apresenta Dar-es-Salam como o local da reunião. A 17 de Agosto os jornais referem a realização de eleições em Moçambique como uma das condições apresentadas por Portugal. Informa-se ainda que a Frelimo pretende ficar com 75 por cento dos lugares num futuro governo de Moçambique e indica-se o dia 19 de Agosto como o momento em que, no Palácio de Belém, Melo Antunes seria empossado como presidente da Junta Governativa de Moçambique. (Na realidade esse cargo seria ocupado precisamente nesse dia 17 por Ferro Ribeiro.)

Quando Mário Soares, Melo Antunes e Almeida Santos começam a negociar em Dar-es-Salam, o peso político da Frelimo multiplicara-se várias vezes, quer pela forma como decorrera o primeiro encontro que tivera lugar na capital tanzanianal, quer por aquilo que entretanto ocorrera em Moçambique: os ataques às linhas férreas não paravam. Grupos apresentados como de saqueadores provenientes do Malawi destruíram as cantinas na estrada que ligava Moma ao Ile e abateram o gado. Brancos, asiáticos e alguns negros fugiram de António Enes, que chegou a estar cercada pelos grupos de saqueadores. Uma mini-ponte aérea foi montada para assegurar a fuga de mulheres e crianças até Nampula, enquanto os homens faziam a viagem de carro, procurando salvar alguns haveres. Em Nampula o número de refugiados aumentava e subia o tom da indignação.

Já em Lisboa crescia em cada página de jornal e noticiário da rádio e da televisão a certeza de que a Frelimo era não só a única força organizada no território, como o elemento indispensável de apoio para a manutenção da ordem. Os noticiários da RTP são particularmente prolixos no relato empolgado de casos de cooperação da Frelimo com as Forças Armadas Portuguesas na captura dos malfeitores e na manutenção da ordem.

E que negociaram Mário Soares, Melo Antunes e Almeida Santos em Dar-es-Salam a 15 de Agosto?

O verbo negociar não retrata o que aconteceu. Na prática Portugal reconheceu todas as pretensões da Frelimo. A descrição mais interessante desta negociação chega-nos precisamente daquele movimento, pois como sempre a descrição mais rica é a feita pelos vencedores, já que o lado perdedor se torna parco em palavras.

A captura da guarnição de Omar fora conhecida logo a 2 de Agosto através de uma nota emanada pelas Forças Armadas e não era segredo para as chefias militares e governamentais que os militares capturados estavam a ser exibidos em Dar-es-Salam em circunstâncias vexatórias. Como é que Almeida Santos. Ministro da Coordenação Interterritorial, pode escrever que esta notícia só chega a Lisboa a 13 ou 14 de Agosto?

Pela Frelimo, Óscar Monteiro, jovem quadro que participou no encontro, não só dá conta com precisão e natural orgulho daquilo que a Frelimo conseguira – “Desenham-se os mecanismos de transição: o Governo será dirigido pela Frelimo, com o primeiro-ministro e seis ministros a ser designados pela Frelimo e três ministros a ser designados pelo Governo português e que seriam os das áreas menos políticas: Transportes e Comunicações, Obras Públicas e Habitação e Saúde e Assuntos Sociais” –, como explica as aparentes cedências do seu movimento: “A soberania ficava em mãos portuguesas (…) Mais: em caso de agressão externa – tinha-se a África do Sul em mente – o Alto Comissário, representante da soberania portuguesa assumiria o comando de todas as forças. Assim à primeira vista paradoxalmente a Frelimo, depois de lutar pela independência contra o Exército português, aceitava o seu comando. Direi agora que era ainda uma forma de lutar pela independência de Moçambique.”**

Traz a cassete…

Por contraste com este relato as descrições dos membros da delegação portuguesa têm algo de grotescamente naif. Como de costume, a delegação portuguesa, ou parte dela, parece ter ido para as negociações na ignorância de factos que eram do conhecimento de todos. Assim e por mais extraordinário que pareça Almeida Santos em Quase Memórias escreve que só soubera da captura da base Omar a 13 ou 14 de Agosto:

“Na véspera da partida da delegação portuguesa que ia iniciar em Dar-es-Salam as negociações com uma representação da Frelimo [que começaram a 15 de Agosto de 1975], recebeu-se em Lisboa a notícia, de fonte militar, de que uma companhia das Forças Armadas portuguesas havia sido “emboscada e aprisionada” por forças da Frelimo, em Omar, no Norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia.”

Ora a captura da guarnição de Omar fora conhecida logo a 2 de Agosto através de uma nota emanada pelas Forças Armadas. De igual modo não era segredo para as chefias militares e governamentais que os militares capturados em Omar estavam a ser exibidos em Dar-es-Salam em circunstâncias que Lisboa considerava vexatórias. Como é que Almeida Santos. Ministro da Coordenação Interterritorial, pode escrever que esta notícia só chega a Lisboa a 13 ou 14 de Agosto?

Almeida Santos dá ainda conta de que Spínola exigiu que em Dar-es-Salam a 15 de Agosto, antes de se dar início às negociações, e como condição desse mesmo início, a delegação da Frelimo apresentasse desculpas à delegação portuguesa por aquilo que sucedera em Omar. E aqui temos mais um relato em que as contradições se acumulam:

“Assim fizemos. Mas, com surpresa nossa, Samora Machel começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar:
– Emboscada de Omar?! Uma companhia aprisionada?!…
Por fim fez-se luz no seu espírito:
– O quê? Aquela “entrega” dos vossos soldados?
E voltando-se para um qualquer assessor da sua delegação:
– Traz a cassete…
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida, e ouvi-la ficou a constituir uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.
O que nós ouvimos foi o registo sonoro de uma “entrega”, não apenas voluntária, mas insistentemente solicitada.
– Vocês quem são?
(Veio a identificação.)
– E querem entregar-se porquê?
– Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!

Não garanto a exactidão das palavras – cito de memória –, mas asseguro o sentido delas.
Seguiram-se os abraços, o “pega lá a minha arma, meu irmão”, etc., etc. É claro que não havia lugar a exigência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo.”

Note-se que a assistir a este remake do “Traz a cassete…” por parte de Samora está Melo Antunes que, segundo Almeida Costa, já teria passado por situação similar a 2 de Agosto. A partir daqui e perante o grotesco da situação cada um escolhe a versão que preferir. Mas temos de admitir que qualquer uma das versões adquire um ar de ópera bufa.

Podemos preferir acreditar que Melo Antunes não avisou Spínola sobre o material que lhe fora mostrado por Samora Machel a 2 de Agosto – coisa aparentemente inverosímil pois a acreditar em Almeida e Costa essa reunião fora condicionada pela apresentação desse material, nomeadamente da cassete que mostrava como os militares portugueses não só não iam combater mais como já estavam a entregar-se e a entregar informações à Frelimo.

No caso de optarmos por esta versão teremos de admitir ainda que Melo Antunes manteve também na ignorância sobre o material que estava nas mãos da Frelimo os outros membros da delegação. Que é o mesmo que dizer que lhes sonegou informação relevante para as negociações que iam ter lugar e ficou a assistir ao que Almeida Santos descreve como “uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.” (Inexplicável é também o facto de, tendo a rendição de Omar tido tal impacto nas negociações que levou a cabo, ela não seja referida por Melo Antunes nas entrevistas que concedeu posteriormente.)

Podemos acreditar que, pelo contrário, Melo Antunes avisou Spínola, Mário Soares e Almeida Santos sobre a natureza comprometedora para as Forças Armadas do material apresentado por Samora Machel. Mas que Mário Soares e Almeida Santos optaram por declarar não ter sido informados por Melo Antunes pois desse modo podem justificar o seu fraco desempenho diante da Frelimo: afinal que pode negociar uma delegação enquanto ouve os soldados do seu país a saudar efusivamente os seus captores?
Mal chegados, a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.

– Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete...
– Uma cassete?!
– É verdade! Uma cassete!

Logo se pediu um leitor de cassetes. Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado.

Seja qual for a versão que se escolha, é preciso ter em conta que este constrangedor espectáculo ainda não terminou. O último acto vai ter lugar no Buçaco.

Almeida Santos recorda-o nestes termos:

“Mal chegados, a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.

– Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete…
– Uma cassete?!
– É verdade! Uma cassete!

Logo se pediu um leitor de cassetes. Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás do seu inseparável monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? Se aquilo era para ele o que era para mim, inveterado paisano, o que não seria para o lendário cabo-de-guerra?…”

O linguarejar com paisanos e lendários cabos-de-guerra não chega para iludir os diálogos que parecem retirados de um mau guião de um folhetim radiofónico:

– Uma cassete?!
– É verdade! Uma cassete!

Para lá do ridículo há algo de evidentemente falso em tudo isto, seja na admiração de Spínola seja na resposta exclamativa dos seus interlocutores. Afinal desde que a 2 de Agosto as Forças Armadas tinham emitido a nota dando conta da captura da guarnição de Omar que era público terem sido feitas fotografias e gravações de som e de imagem com os militares capturados. Como avisava a nota oficiosa no seu ponto 11: “Tem-se conhecimento de que é intenção da Frelimo filmar e fotografar os nossos soldados, com finalidade que é fácil adivinhar.”

Logo, seja a admiração de Spínola no Buçaco seja o estado de estupor que Almeida Santos diz ter vivido em Dar-es-Salam são objectivamente difíceis de entender.

E foi assim, no ambiente pastiche de castelo faz de conta do Buçaco que a missão da cassette da rendição de Omar chegou ao fim. E chegou com sucesso pois permitiu a cada um dos protagonistas fundamentar a sua versão dos factos. E cada versão é uma narrativa tão detalhada sobre a culpa dos outros quanto bondosamente omissa sobre as próprias.

Afinal se a rendição na madrugada do dia 1 de Agosto de 1974 da companhia de Omar se reveste de aspectos perturbantes, as diferentes narrativas sobre o que sucedeu daí em diante não são menos constrangedoras, tanto mais que agora não estamos perante jovens soldados que no cumprimento de um difícil serviço militar obrigatório, acabam isolados no norte de Moçambique, para mais comandados por um miliciano, mas sim diante da elite política e militar do País.

Graças à cassete da rendição de Omar, Spínola pode desempenhar seu papel de lendário cabo-de-guerra ao recusar-se a ouvir os sons da humilhação daqueles a quem chamou melhores entre os melhores e manter a versão de que fora atraiçoado por Melo Antunes. Almeida Santos pode justificar-se como não negociador porque afinal o que pode negociar uma delegação submetida a “uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país”?

Mário Soares, passada a fase inicial em que anunciou as independências puras e simples, vai-se tornando cada vez mais numa personagem alheia e alheada de factos que nitidamente o ultrapassam e parecem interessar cada vez menos: nega, tal como o fizeram Spínola e Almeida Santos, ter sido informado por Melo Antunes acerca do encontro que teve lugar em Dar-es-Salam de 31 de Julho a 2 de Agosto. Sobre o encontro em que participou, o de 15 de Agosto, Mário Soares não refere a apresentação de cassete alguma por Samora Machel, mas sim o facto de tanto ele como Almeida Santos terem ficado a nadar na piscina do hotel enquanto esperavam por um desaparecido Melo Antunes. Este surgiu muito depois do combinado: estivera num encontro com o Presidente da Tanzânia, Nyerere, reunião essa de que não informara os outros membros da delegação.

Melo Antunes, no livro-entrevista organizado por Manuela Cruzeiro Melo Antunes, O sonhador pragmático, ao referir o encontro de 2 de Agosto de 1974 em Dar-es-Salam, não só não evoca o que em 1979 definira como “mandato precioso” que Spínola lhe teria dado para negociar, como pelo contrário declara que estava “frontalmente em choque com as concepções de Spínola”. Mais precisamente dirá que em Dar-es-Salam “na verdade, concretamente, o que eu estava a fazer, pessoalmente, era defender o meu ponto de vista (ou os meus pontos de vista) sobre a descolonização.”) E esses pontos de vista não podiam ser mais claros: “vou dizer-lhes [à Frelimo] fundamentalmente o seguinte: (…) a Frelimo (…) tem toda a legitimidade de ser o nosso interlocutor neste processo de descolonização.”

Sobre a captura da base Omar, as cassetes com declarações dos soldados capturados e outro material levado por Samora Machel para as reuniões de 2 e 15 de Agosto Melo Antunes não faz declarações. Óscar Monteiro o jovem quadro da Frelimo que participa nas reuniões de Dar-es-Salam, recorda o momento em que Melo Antunes abordou a questão de Omar:

“Melo Antunes chama-nos à parte e dá a informação que Vítor Crespo que era da confiança do Movimento das Forças Armadas seria o Alto Comissário e levanta um problema grave: o MFA encarava muito mal o assalto de Namatil [Omar] dado que podia ser prenúncio de uma desagregação que eles como militares e como dirigentes não podiam aceitar. Exigiam que a Frelimo cessasse tais ataques, para o bom andamento das conversações. Concordamos como prova de boa vontade e em resposta aos passos que estávamos a dar nas negociações. Também não nos interessava essa desagregação, em todo o caso o nosso ponto estava feito.”

Exactamente: o ponto estava feito e por isso, terminado o seu papel de efeito especial, a cassete voltou a ser apenas uma cassete.

Os militares capturados em Omar permaneceram na Tanzânia até 19 de Setembro de 1974. Ou seja, até doze dias após Portugal ter celebrado o Acordo de Lusaka, que no seu primeiro ponto estabelece que o Estado Português aceitava transferir progressivamente para a Frelimo os poderes que detinha sobre o território moçambicano.

Melo Antunes e Almeida Santos terão contado a Óscar Monteiro que na viagem ao Buçaco a 19 de Agosto se cruzaram com uma delegação da FICO (Frente Integracionista de Continuidade Ocidental), um movimento político moçambicano que enviara a Portugal vários dirigentes para que estes sensibilizassem Spínola, Costa Gomes e Vítor Crespo para a necessidade de alargar o leque de interlocutores nas negociações sobre o futuro de Moçambique. Era tarde demais. Portugal deixara de negociar independências para passar a tratar do expediente da reconversão das colónias em repúblicas populares.

Tranquilamente, como qualquer adereço de uma representação de segunda categoria, a cassete da rendição de Omar acabou esquecida e nem sequer foi arquivada: em 1996, Victor Crespo, que foi Alto-Comissário em Moçambique de Setembro de 1974 a Junho de 1975, declarou ter em sua posse as cassetes da rendição de Omar.***

Os militares capturados em Omar permaneceram na Tanzânia até 19 de Setembro de 1974. Ou seja, até doze dias após Portugal ter celebrado o Acordo de Lusaka, que no seu primeiro ponto estabelece que o Estado Português aceitava transferir progressivamente para a Frelimo os poderes que detinha sobre o território moçambicano.

Nenhum dos militares capturados em Omar foi oficial ou institucionalmente ouvido.

Para descanso de todos os protagonistas, os jornalistas esses fizeram o que se esperava: não se dedicaram a especulações reaccionárias e não escreveram sobre Omar.

* As declarações de Almeida e Costa são retiradas do artigo de Armando Rafael publicado em Abril de 2004 no Diário de Notícias “A missão secreta de Dar-es-Salam” e do Painel dedicado a Moçambique (29 de Agosto de 1996) dos Estudos Gerais da Arrábida A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA
** O relato de Óscar Monteiro foi retirado do seu texto “Testemunho de um jovem nas negociações para a independência de Moçambique”
*** A declaração de Vítor Crespo foi feita durante o Painel dedicado a Moçambique (29 de Agosto de 1996) dos Estudos Gerais da Arrábida A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Angola, Cabinda, Novembro de 1974.

O brigadeiro Silva Cardoso, membro da Junta Governativa de Angola, entra no Comando do Sector de Cabinda. Vários militares do MPLA devidamente armados fazem a segurança do edifício. Alguns soldados portugueses permanecem sentados.

A situação que levara Silva Cardoso a Cabinda é, no mínimo, surreal: em território sob administração portuguesa, um movimento, o MPLA, mantinha sequestrados vários militares portugueses, dentro de uma unidade militar portuguesa e com a conivência de militares portugueses.

No primeiro andar do Comando do Sector, Silva Cardoso cruza-se finalmente com um capitão das Forças Armadas Portuguesas. Diz-lhe ao que vai. O capitão indica-lhe a porta de uma sala guardada por um militar das FAPLA. Quando a porta é aberta avista-se uma sala onde eram mantidos presos os oficiais do Comando de Cabinda, entre os quais o próprio comandante, brigadeiro Themudo Barata. O óbvio remetia para uma palavra que entre os militares tem um peso próprio: traição.

Com a cumplicidade de vários militares portugueses, o MPLA não só tomara o Comando do Sector de Cabinda, como fizera prisioneiros os militares do respectivo comando.

A razão era simples: o MPLA precisava aceder ao material de guerra proveniente da URSS. Mas para isso o MPLA tinha de controlar as zonas portuárias e precisava de circular livremente dentro de Cabinda. Ora Themudo Barata não aceitara pactuar com essa manobra. Logo criar uma situação que obrigasse ao seu afastamento foi a solução.

Guiné, Bambadinca, 16 de Agosto de 1974.

Finalmente chega o helicóptero com o Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné. Carlos Fabião, que é também Encarregado do Governo, desce do helicóptero.

Aos homens que estão dentro do quartel o ruído do helicóptero não passa de modo algum desapercebido. Sabem que a partir daquele momento o desfecho está para breve. Estão sequestrados há quarenta horas e ou Fabião consegue resolver a situação com os sequestradores, ou a situação agravar-se-á necessariamente, mesmo que a ameaça de fuzilamento que paira no ar não seja passada à prática.

Mas tudo correrá bem: com Fabião vêm duas malas. Rapidamente elas são abertas e o seu conteúdo distribuído pela Companhia de Caçadores 21. Assim que recebem o dinheiro os homens da Companhia de Caçadores 21 cumprem a sua palavra e libertam os militares que há quarenta horas ameaçam fuzilar caso não lhes fosse pago um resgate.

O que acabara de acontecer em Bambadinca explica-se em poucas palavras – militares portugueses de origem guineense ao saberem que iam ser desarmados e desmobilizados, o que os colocaria nas mãos do PAIGC, fizeram reféns alguns colegas de armas idos da metrópole. Pedem um resgate – 300 contos por cada homem, valor que terá baixado para 60 – caso contrário começariam a fuzilar os reféns. Os oficiais seriam os primeiros. Dão 48 horas ao Comando Territorial para responder.

Em Bambadinca, o dinheiro, “patacão”, resolveu a situação.

Em Paúnca, teve de ser o PAIGC: no mesmo início de Agosto de 1974, os militares fulas da Companhia de Caçadores 11, ao saberem que vão ser desmobilizados, expulsam do quartel os militares brancos. Estes, desarmados, dirigem-se a um acampamento do PAIGC que rapidamente recupera o quartel.

Sair rapidamente da Guiné tornava-se imperioso pois, desfeita a hierarquia de comando, multiplicavam-se situações comprometedoras como as de Bambadinca e Paúnca além de casos patéticos como os protagonizados pelo tenente-coronel Luís Ataíde Banazol que, não satisfeito com o dramático desfecho da operação em que entabulou por conta própria contactos com o PAIGC – a companhia caiu numa emboscada da qual resultaram dois mortos e dezoito feridos, dois dos quais ficaram mutilados –, achou por bem enviar uma circular para todas as unidades da Guiné propondo que o Brasil assumisse o poder naquele território. Quem estivesse de acordo deveria enviar uma mensagem de resposta apenas com uma palavra: “Chapéu”.

* Dados retirados do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e de “Otelo, O Revolucionário”, Paulo Moura, D. Quixote, 2012

O discurso directo dos protagonistas ajuda a perceber o ambiente em que, longe dos gabinetes e da sua linguagem formal, muitas decisões – às vezes as mais importantes – foram tomadas no processo a que chamamos descolonização.

Matos Gomes, que integrava a primeira Comissão Coordenadora do MFA na Guiné, recorda o sucedido num registo em que o tom coloquial acentua o realismo: na Guiné…

“a questão era resolver o mais depressa possível, e resolver o mais depressa possível era passar o poder o mais depressa possível. Numa assembleia ninguém corria o risco, por muito que o pensasse, de vir fazer uma proposta: «Vamos continuar a defender-nos nestes pontos, nestas trincheiras, nesta linha, e depois de nos defendermos aqui, em posições firmes, vamos negociar.» Uma criatura que fizesse uma proposta destas numa assembleia era linchado. (…) Numa coisa destas não há nada que choque muito. Choca hoje com o conhecimento que temos hoje. Mas naquela altura, o que diziam [era]: «Vamos embora». [Invocavam] a situação do momento: era um momento de impasse nas negociações de Argel, em que na Guiné se atribuía esse impasse ao general Spínola. O impasse é provocado pelas questões do general Spínola, que está a tentar pilotar e conduzir o processo aqui assim, portanto não está a abrir mão daquilo que é o papel que deseja [ter] neste processo! E a malta está aqui a lixar-se por causa do velho que quer tomar conta do negócio e não quer perder aqui a rédea. Outra coisa que diziam era: «Com quem é que nós estamos a negociar? É com o PAIGC. Não há alternativa. É com esses tipos e esses tipos só negoceiam connosco se incluirmos no mesmo pacote a Guiné e Cabo Verde. Oh pá, damos essa de barato». Aliás, a primeira questão que se põe relativamente a Cabo Verde é: «A quem é que nós entregamos o poder em Cabo Verde?» Logo a seguir ao 25 de Abril, esse é que era o problema de Cabo Verde. De Cabo Verde e de S. Tomé. «A quem é que se entrega o poder, o que é que se faz com aquilo?» Eu lembro-me de uma discussão, em que já se punha o problema de Cabo Verde (… e punha-se o problema dos Açores!) Se aparecesse uma organização, com alguma estrutura, que já funcionasse e fosse reconhecida internacionalmente [que pudesse] gerir estes dois territórios, essa organização era um excelente comprador daquilo que nós tínhamos para vender.”

Coronel Matos Gomes, Estudos Gerais da Arrábida, A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA, Painel dedicado à Guiné (29 de Agosto de 1995).

Texto & Créditos Fotográficos: Helena Matos Observador

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