Chego à Base de Alfeite a meio de uma tarde que deambula entre a chuva e uns rasgos de sol. Recebi há dias a autorização da Marinha Portuguesa para viajar no submarino Tridente. A curiosidade é enorme.
Neste dia de Abril, a Primavera apresenta-se com o seu pior vestido. Há nuvens volumosas sobre o Tejo. Sou recebido por um oficial de distinta formalidade e simpatia. De malote atravessado ao peito, percorro a extensa base. É como uma cidade ao serviço da marinha, abrigada por muros dos olhares indiscretos dos civis. O Cristo Rei pisca-lhe o olho, de braços abertos, no Alto do Pragal.
Ao lado das fragatas impecavelmente cuidadas, destaca-se o lugre Creoula, um antigo bacalhoeiro, branco como a neve que cobria as paragens onde tantas vezes atracou. Está a aguardar pelas marés do Verão.
Esta é uma paisagem rara para os meus olhos. Apenas em jogos de computador ou em exposições de modelismo vi este tipo de beleza. O submarino destaca-se pelos seus 68 metros de comprimento. É negro como o carvão. Os mastros e a ponta do periscópio vincam a sua identidade.
Vou agora
Envio o último SMS antes de o telemóvel ficar sem rede. Desço umas escadas em ferro com cerca de seis metros para chegar ao corpo de avante. Belisco-me para confirmar que não se trata de um sonho. O sol ficou lá fora - deu lugar à luz artificial que me vai iluminar nos próximos dois dias.
Cabe aqui uma guarnição de sete oficiais, dez sargentos e 16 praças, todos fardados a preceito. Hirtos de rigor militar, sabem o que fazer e onde estar, de forma coordenada, com bordadas (turnos) de seis horas. Parece uma colmeia. A movimentação faz-se ao comprido neste tubo estreito. Quando duas pessoas se cruzam, alguém tem de ceder passagem.
Só posso circular entre a sala de controlo e a sala de convívio. Recebo indicações para não recolher imagens de determinados equipamentos. Respeito e guardo só para mim o que vi. Na verdade os meus olhos estão esgazeados de tanto fascínio, que nem tento perceber o que me coibiram de fotografar. Existem torneiras, botões e tubos por todo o lado. Até nas duas únicas casas de banho. O submarino não é uma embarcação de recreio. É uma máquina de trabalho ao serviço da nação, que tem a peculiaridade de não ser visível quando está submersa. Daí a austeridade do interior.
“O senhor Comandante convida-o a subir à torre”, comunica-me um oficial. Subo as escadas até ficar com o Tejo à vista. O vento bate-nos na face. Parece que o sol afinal chegou para ficar. Vamos a uma velocidade moderada, de peito cheio. Sinto-me tão orgulhoso por estar aqui como se sentem os submarinistas por pertencerem à 5.ª Esquadrilha.
À medida que vamos deixando a Base para trás, passamos por baixo da ponte 25 de Abril. Estão todos a postos e em permanente comunicação. Cruzamo-nos com cacilheiros e veleiros, que nos dão prioridade. Entretanto começo a sentir que estamos em alto-mar, depois de avistar o farol de São Lourenço do Bugio. Cascais esfuma-se no horizonte e a Costa da Caparica transforma-se numa linha ténue, lá bem ao fundo. Continuamos ainda à superfície a deslizar ao de leve nas águas do Atlântico. Fumamos um cigarro e conversamos sobre tudo um pouco. Sinto o corpo a baloiçar suavemente. O submarino é acariciado pela corrente do mar enquanto está parado. Esta viagem servirá de preparação para uma operação de 15 dias, conjunta com um submarino alemão que se encontra nas nossas águas. Vão testar o lançamento dos torpedos que o submarino carrega.
Na torre, junto-me a um punhado de submarinistas. Uns fumam, outros enviam SMS, outros conversam. O espírito de camaradagem está bem patente. Há quem relembre momentos passados a bordo deste mesmo submersível. “Uma vez fomos aos EUA. A discrição do submarino é de tal ordem que conseguimos estar ao lado de um porta-aviões americano sem que se apercebessem da nossa chegada. Somos invisíveis debaixo de água”.
Noite
Quando nos aproximamos das 20 horas, as luzes no interior do submarino começam a baixar de intensidade. É a única forma de distinguirmos o dia da noite. Não existem janelinhas redondas com vista para o exterior, como vemos nos desenhos animados. A Sala dos Comandos está crivada de monitores e painéis de controlo. A guarnição fala entre si sem que eu entenda patavina. Subentendo que os gráficos desenhados em alguns dos monitores correspondem aos sons registados pelo sonar. Conseguem distinguir os tipos de embarcações a partir do som que as suas hélices produzem. Os sensores são de tal forma potentes e exactos que permitem identificar muitas espécies marinhas, como camarões ou cardumes de sardinha. O submarino vai às escuras pelas águas oceânicas. É como se estivéssemos num quarto sem luz.
Enquanto uns controlam os monitores, outros escrevem o Diário de Bordo do submarino, à mão e com aprimorado rigor. Entretanto vou dar uma volta, ver como está o ambiente na sala de convívio. Passo pela pequena cozinha. Dois cozinheiros preparam arroz de lulas ao som de uma música africana que sai da coluna de um telemóvel.
Janto na sala dos oficiais. Os turnos também se aplicam nas horas das refeições. Não comem todos juntos, nem sequer ao mesmo tempo. A conversa prolonga-se e começo a perceber que dentro do submarino estão representadas quase todas as regiões do país. Um é dos Açores, outro do Porto e por aí adiante.
Antes de submergirmos subimos à torre para fumar um cigarro. O mar está uma 'sopa', sem agitação. “Você trouxe sorte. Há dois anos que não apanhamos um tempo assim”, diz-me o comandante. Lá ao fundo pisca o farol do Cabo Espichel. O céu está estrelado. “Está a ver ali? É planeta Vénus alinhado com a cintura de Orion”. Pergunto-lhes se estudam os astros e respondem-me que sim.
Chegada a hora de recolher, volto a descer as escadas. É fechada a escotilha. A partir de agora estou selado. Esta cápsula gigante vai submergir. Não entra água aqui. Não pode.
Encaminho-me para a minha cama, uma maca montada no corredor, mesmo sobre a mesa onde logo de manhã será servido o pequeno-almoço. Estou deitado. Por cima de mim está um futuro cozinheiro. Só podem ser submarinistas aqueles que se comprometem a permanecer nos quadros da Marinha. O conhecimento adquirido nesta embarcação é demasiado precioso para se formar militares de passagem. Os quartos estão reservados para os graduados, que têm outras responsabilidades. Merecem umas horas de sono tranquilas para preservar as suas competências. Sinto a cama a inclinar e alguns estalinhos nos ouvidos. É o submarino a submergir. Oiço dizer que atingimos os cento e tal metros de profundidade.
Sou embalado por um zunido grave das ventilações que renovam o oxigénio. Lá ao fundo, continua a trabalhar a guarnição que está de serviço, enquanto outra, como eu, dorme para daqui a seis horas entrar em acção.
Bom dia
Acordo em sobressalto, de novo inclinado, a sentir alguma vibração como se fosse um terramoto. Ouve-se o barulho de motores mas nenhum sinal da guarnição. Acho que o militar que está a dormir na cama por cima de mim nem abriu a pestana. Já conhece isto de frente para trás.
Entretanto o ambiente estabiliza e percebo que estamos a vir à superfície. São seis da manhã. O sol nasce às 07h15. Levanto-me, arrumo o saco de cama e preparo-me para mais um dia. Acorda mais gente. Vão entrar em serviço. Uns dizem 'bom dia', outros dirigem-se para a casa de banho em silêncio. Vou à cozinha queixar-me de que a água está fria. O cozinheiro faz-me o favor de a tornar quente. Tomo banho num dos dois chuveiros e visto-me para começar a trabalhar. Tomo o pequeno almoço com um dos oficiais e subo para a torre. Deparo-me com um nascer do sol como nunca tinha visto. Os tons alaranjados espalham-se em reflexos ao longo do oceano. Aproveito cada minuto como se fosse o último.
Entrego o corpo e a alma a cada clique da máquina fotográfica. Só vejo mar à minha volta. Explicam-me que, com a extensão da plataforma continental, o nosso país atingiu os 4 milhões de km2. Hoje somos 97% de mar e 3% de terra. Estou a flutuar sobre Portugal. Afinal não é assim tão pequeno. (Sol)
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