Numa entrevista ao Expresso, o general Peter Wall, comandante-chefe das forças terrestres britânicas, diz que, se depender do Reino Unido, os comandos portugueses que partem em Janeiro para Cabul terão todo o apoio logístico para combaterem na frente.
No Afeganistão, 2009 tem sido o pior ano para as tropas britânicas desde o início do conflito. Estamos a perder a guerra?
Não. Cada baixa que temos é grave e causa sofrimento às famílias dos nossos soldados. Temos de manter presente quais são as razões para a nossa campanha, porque que é que estamos no Afeganistão. A campanha não consiste em comparar as nossas baixas com as baixas dos talibãs. Tem antes a ver com progresso e governabilidade.
Uma sondagem publicada pelo jornal Independent revela que 71 por cento dos britânicos quer que os seus soldados regressem a casa no próximo ano. Durante quanto tempo o Reino Unido pensa manter as tropas no Afeganistão?
Há um artigo muito interessante no Independent de hoje sobre como se pode realmente compreender o que as pessoas julgam que querem. Temos de continuar com esta campanha até ela ser bem sucedida. Há um desafio colocado aos líderes políticos, apoiados por militares como eu, para articularem de forma mais clara o que nós estamos a fazer no Afeganistão e assim conseguirem uma base mais sólida de apoio. Seria útil ter uma sondagem nos jornais britânicos que perguntasse se as pessoas apoiam os homens e as mulheres que estão a cumprir serviço no Afeganistão. Penso que mais de 90 por cento diriam que sim.
O Reino Unido tem mais tropas no Afeganistão do que qualquer outro país europeu. Pensa que há uma falta de compromisso por parte da maioria dos países europeus em relação a esta guerra?
Alguns países estão bastante empenhados e que não têm capacidade para terem grandes contingentes no Afeganistão, tendo em conta a sua população e a dimensão das suas forças armadas. Dou como exemplo o grupo de combate fornecido pelo exército dinamarquês. A Dinamarca tem, proporcionalmente, o mesmo nível de compromisso que nós. E tem um forte apoio da população, mesmo tendo baixas que proporcionalmente são elevadas. É verdade que há outras nações que podiam participar mais mas que estão condicionadas pela sua politica interna.
O primeiro-ministro Gordon Brown está a pressionar outros países para enviarem mais cinco mil soldados. Portugal está nessa lista de países?
Não conheço uma lista específica de países. Li o mesmo nos jornais. Há uma vontade do Reino Unido de fazer parte de um plano para encorajar uma maior participação. O primeiro-ministro ficaria de certeza muito satisfeito se os nossos aliados tão chegados como são os portugueses reequacionassem e aumentassem as forças no Afeganistão, porque Portugal já deu uma contribuição significativa, especialmente com uma Quick Reaction Force em 2006. E sei que existem planos, embora não caiba a mim falar deles, como militar estrangeiro, para as vossas forças aumentarem o nível de compromisso. Isso seria, obviamente, muito bem recebido. Num mundo ideal, este fardo seria distribuído de uma forma mais equitativa. Se assim fosse, nós poderíamos enviar mais tropas, caso fosse necessário. Mas é possível que não precisemos de um grande aumento de forças, mas sim das pessoas certas a fazer o trabalho certo nos sítios certos. Por exemplo, reforçando o treino das forças afegãs, uma função para a qual a NATO tem um bom pedigree. O problema não é apenas um reforço em massa, mas o que os militares estão preparados para fazer e as competências que podem levar para o terreno. E claro que não se trata só de uma campanha militar. Os militares têm um papel muito importante de manter um cordão de segurança, mas a grande diferença vai ser feita na governabilidade, na estabilização, no desenvolvimento, coisas como o treino para a paz, para o estado de direito, para o controlo do crime, para reduzir a produção de droga. Objectivos que não correspondem a tarefas militares.
Teve alguma reunião com as forças armadas portuguesas para discutir o reforço da participação de Portugal?
Tive um encontro muito construtivo com o vice-chefe do (Estado Maior do) Exército, durante o qual falámos de assuntos relacionados com o Afeganistão e de como trabalhar juntos em programas de treinos, mas não foi abordado nada de específico em relação ao emprego de cada uma das nossas forças.
Foi-lhe mostrada disponibilidade de haver um aumento das forças portuguesas?
Não falámos sobre isso. Terá de ser ele a dizer-lho, se quiser.
Há uma companhia de 150 homens das forças especiais portuguesas que vão embarcar para o Afeganistão no início do próximo ano. Portugal não possui apoio logístico próprio no terreno. É possível ter tropas portuguesas em combate, na frente?
A experiência de 2006 responde a essa pergunta. Tenho a certeza de que é possível. Claro que se trata de uma decisão de Portugal e da própria NATO, em relação à missão que poderá ser atribuída a essas forças. Há exemplos de outros países com tropas nas zonas de combate e que têm apoio logístico por parte das nações que possuem grandes bases lá. Em princípio, esses problemas podem ser resolvidos.
Houve o exemplo dos polacos, que combateram ao lado dos ingleses na grande ofensiva que o Reino Unido liderou este Verão em Kandahar e em Helmand.
Penso que a logística multinacional funciona muito bem na ajuda a nações que não têm esses apoios. Não tenho detalhes sobre os polacos, mas conheço exemplos de outros países que têm dependido em grande medida da logística britânica e tem corrido bem.
Portanto, é um assunto em aberto.
Só é um assunto em aberto porque o princípio é correcto, mas é preciso trabalhar nos detalhes. Claro que se trata de um assunto para o governo português e as forças portuguesas resolverem com a NATO. Nós adorávamos trabalhar juntos novamente com as forças portuguesas, como fizemos em tantas situações em séculos anteriores e como fizemos recentemente no Kosovo, onde partilhámos uma base até Julho deste ano. Para nós, é uma rotina os soldados ingleses e os soldados portugueses trabalharem juntos.
O que pode acontecer se o presidente Barack Obama recusar o pedido de mais tropas americanas feito pelo general McChrystal? A guerra ficará em risco com uma decisão dessas?
Para já, eu não lhe chamaria uma guerra. Tem algumas características de combate, mas não é uma guerra clássica. Não é sequer uma guerra de guerrilha, é um conflito de contra-insurgência, que tem a ver sobretudo com o progresso noutras áreas que não a área militar. Se o presidente Obama rejeitar o conselho militar que lhe deram, toda a gente respeitará essa decisão. Terá de haver então um entendimento sobre a relação entre os recursos disponíveis e as missões que estamos a tentar cumprir e o calendário para as cumprir. Vai demorar mais tempo, o que implicará maiores riscos, mas no fundo não se trata de ter uma maior força da ISAF a derrotar uma força da oposição ou de talibãs de uma determinada dimensão. Trata-se antes de fornecer segurança à governabilidade e, em paralelo, desenvolver forças de segurança afegãs mais sólidas. A vantagem de um reforço das tropas é permitir que essas coisas aconteçam mais depressa.
Mas há países que já estão a pensar retirar as suas tropas no curto prazo, como a Holanda e o Canadá.
Existe essa perspectiva, mas as decisões ainda não foram tomadas.
Num cenário em que os Estado Unidos não enviam mais tropas, qual será o papel dos países europeus?
Os americanos já estão a dar uma contribuição muito significativa. E aumentaram o contingente com mais 20 mil homens no último ano. Na verdade, os efeitos dessas forças adicionais - com reforços também de outros países - ainda não se sentem totalmente. Não se pode concluir ainda que esta campanha não possa ter sucesso com os níveis de reforço que estão a ser realizados pela ISAF, por países que não fazem parte da NATO e pelos próprios afegãos. É, provavelmente, uma questão mais de calendário.
O tempo corre contra os aliados.
Porque é que o tempo corre contra nós?
Porque os talibãs têm aumentado o número de ataques.
A sua métrica tem sido, até agora, sobre o número de baixas e o números de ataques à bomba. Nós vemos a coisa pela perspectiva do progresso, da governabilidade e da estabilização nas áreas que os talibãs já não controlam. Embora a questão dependa da segurança, não está a ter em conta o progresso que tem sido feito enquanto os combates continuam.
Acredita que as eleições aconteceram na melhor altura?
O facto é que as eleições aconteceram. Os talibãs esforçaram-se por sabotá-las, aliás, houve um número elevado de ataques, mas que não impediram que as eleições tivessem lugar. Nós conhecemos os resultados e o senhor Karzai tem condições agora de formar um governo e continuar a gerir o país.
O embaixador americano em Kabul escreveu alguns memorandos polémicos dizendo que a vitória de Hamid Karzai compromete o envio de mais forças para o país e que isso não deve ocorrer até que se resolva o problema (relacionado com a fraude eleitoral e com acusações sistemáticas de corrupção). Concorda com ele?
Ele está em Cabul e está mais próximo do governo afegão do que eu. Mas tenho uma opinião diferente. Observei o modo como o governo é capaz de dar passos no sentido da estabilização e da governabilidade. O ideal seria fazer isso de uma maneira mais rápida, com um nível maior de garantias e, em paralelo, formar o exército afegão. A tese de que a campanha devia se desenvolver de forma sequencial, em que resolvemos primeiro a corrupção e a eficácia do governo central e a partir daí fazemos as outras coisas que são precisas ser feitas, é idealista. A situação não deve ser gerida assim.
Defende que esses progressos devem ser feitos em simultânea?
Sim, as coisas devem ser feitas simultaneamente, enquanto temos uma oportunidade para isso. Eu acredito que estamos condicionados pelo factor tempo. Se os talibãs não forem pressionados, eles vão ter mais oportunidades de intimidar as populações locais.
Por que é que existem duas estruturas militares distintas na missão internacional: a ISAF (NATO) e a Operation Enduring Freedom (OEF), ambas debaixo do comando do general McChrystal?
A cadeia de comando militar é mais eficiente agora do que no passado, mas é verdade que existem duas missões separadas, a ISAF e a OEF, e isso deve-se a um pequeno acidente da história e ao facto de os Estados Unidos terem entrado primeiro do que a NATO nesta campanha. Mas as duas operações são compatíveis e as cadeias de comando que gerem cada uma delas estão bastante integradas e coordenadas, partilhando informações e esse tipo de coisas. Já não é uma preocupação actualmente. Não sendo a solução ideal, também não é um cenário assim tão incomum.
Quando estive no Afeganistão reparei também que existe uma falta de coordenação entre os programas militares e os programas civis de cooperação internacional. Como é que os militares estão a trabalhar com as Nações Unidas e as outras organizações civis?
É um problema complicado, por causa do número de agências envolvidas. A integração com as agências civis, sejam elas internacionais ou afegãs, governamentais ou não, é uma mistura muito complexa. A minha opinião é de que no terreno as PRT, Provincial Reconstruction Teams (equipas militares), providenciam a organização ideal para os líderes afegãos articularem as suas aspirações de estabilização e as actividades de desenvolvimento nas províncias e nos distritos. As PRT deviam definir o que agências devem fazer, evitando que diferentes abordagens interfiram umas com as outras, evitando duplicações de recursos e assegurando um gasto eficiente do dinheiro. Em Cabul, é muito difícil perceber com clareza como funcionam as estruturas das organizações. Este é um problema que acontece em qualquer lado do mundo onde esteja um número elevado de agências internacionais, todas a tentarem contribuir para uma causa de forma apaixonada. Inevitavelmente, nem sempre conseguem-no fazer juntas. Mas temos de ser honestos: isso também ocorre nos nossos próprios países. Não é surpreendente que haja essa ligeira falha de coerência em Cabul. À medida que a campanha vai amadurecendo, esses problemas vão-se reduzindo.
Qual é o estado de saúde actual da Al-Qaeda no Afeganistão?
É muito difícil detectar a Al-Qaeda no Afeganistão. Uma das principais razões que levaram à criação desta missão foi eliminar os santuários da Al-Qaeda no país. E isso foi feito. E vai continuar assim enquanto a ISAF mantiver a sua presença, transferindo esse papel progressivamente para o exército afegão. A Al-Qaeda foi para outros lados.
Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 21 de Dezembro de 2009
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