15 de janeiro de 2014

Alpoim Calvão: Centurião, aventureiro, tenor lírico

O rosto ameaçador na capa de O Jornal prometia um par de galhetas ao socialista Sottomayor Cardia. Foi em fotografia que, em 1975, vi pela primeira vez Guilherme Almor de Alpoim Calvão. Muitos anos depois, vi-o ao vivo no Hotel Atlântico, no Monte Estoril. Apesar de já ter 60 anos, produzia um tremendo impacto. Parecia um velho leão poderoso, ainda impossível de derrubar. De chapéu e sobretudo pretos, alto, maciço, lembrava a estátua de Maigret, em Liège. Aliás, em jovem, possante e estatuesco que era, podia ter servido de modelo para a glorificação do corpo masculino. Ao lado dele, Sean Connery pareceria frágil, quebradiço. A propósito, o comando João Almeida Bruno, que atingiu o absoluto topo do mundo castrense, com a Torre e Espada com palma, como guerreiro, e o generalato de quatro estrelas, como militar, considerou Alpoim Calvão “o 007 português”. Vejo-o antes como um misto de James Bond, oficial de Marinha e agente secreto, e de Indiana Jones, o académico aventureiro que caça tesouros. Só que estes dois são ficções e Alpoim Calvão é real. Tão real que, nos anos 70, numa discussão de trânsito, em Lisboa, em vez de dar um ‘calorzinho’ ao furibundo interlocutor, tirou-o do carro com as graníticas mãos, elevou-lhe os pés do chão e sentou-o no tejadilho. Para o homem comum, que nunca deu um murro e só apanhou com tiros vindos da televisão, Calvão é uma figura impossível, não pode existir. E com razão. De facto, ele é bigger than life.

O centurião, o DFE 8 e as Operações Nebulosas

Fuzileiro especial, submarinista e mergulhador de combate, além de piloto de avionetas, Calvão, na água, sente-se “um peixinho”, e é precisamente na Guiné, uma terra de águas, que faz a guerra. Combate cinco anos num clima miasmático com o calor do inferno. ‘Grande’ é o seu nome de guerra. Bate-se na selva asfixiante, nos esteiros, no tarrafe, no lodo das bolanhas. As suas mais famosas operações são a Tridente, na Guiné Portuguesa, e a Mar Verde, na Guiné-Conakry. Na primeira, como primeiro-tenente, ajuda a empurrar o PAIGC para fora das ilhas de Como, Caiar e Catunco. São 70 dias, preenchidos a tiros, que servem de aquecimento para o seu mítico Destacamento de Fuzileiros Especiais 8 (DFE 8). Por sua vez, a Mar Verde, que concebe e comanda, é a última grande operação anfíbia portuguesa, 555 anos depois da que abre o Império em Ceuta, em 1415.

Nos seus anos de Guiné, Calvão revela-se um chefe guerreiro perfeito. Tem peito e tem cabeça. E tem sorte. Distingue-se nos assaltos, golpes de mão e patrulhas nos rios. É um dos senhores da floresta e o rei dos rios. Também se destaca como cérebro operacional. Estuda a Guiné e estuda a guerra, não só para a fazer bem, mas para a aprofundar, para criar guerra, o que o leva, por exemplo, a uma reengenharia das Informações. Calvão encara as operações como uma forma de matemática, planeia-as com precisão fria e não recua nas escolhas drásticas. Vê a guerra, não ao modo de Nietzsche, que a quer sem pensos nem ambulâncias, mas como um ‘moralista’ estóico, como Tucídides. As suas duas comissões dão-lhe cinco anos de ideal em acção e de adrenalina. São anos em cheio. Assim, depois da estreia na Tridente e do DFE 8, onde manda para a sucata um monte de guerrilheiros, recebe a chefia do COP 3, a que dá uma maior letalidade, e acaba como chefe das Operações Especiais. Aqui, numa das Operações Nebulosas, com sangrenta abordagem corpo a corpo, há tal bronca que ‘o acto de pirataria’ chega à ONU.

Calvão é um líder nato. A força de carácter, o carisma, a inteligência culta, o físico e a sua coragem de português antigo tudo vencem, dominam, contagiam. Nos combates, essas tempestades de bocados de aço, ‘Grande’ mantém-se de pé, sereno, atrás de um qualquer tronco, para ver melhor o que se passa. Tenta encontrar uma ordem favorável aos seus na mortal confusão de tiros e berros. A sua serenidade também se manifesta antes da acção, na iminência dela, quando quase sempre há ainda mais tensão do que na acção em si. Por exemplo, antes de desembarques de alto risco aproveita para ler o tio Patinhas. Fatalmente, os subordinados endeusam-no e os pares entremeiam a muita admiração com alguma inveja. Quanto às chefias, respeita Reboredo Seara – tio do ex-presidente da Câmara de Sintra – e respeita mais ainda Spínola.

O elevado ritmo de operações, com a respectiva conta a crescer no carniceiro, como dizem os militares yanquees, exige folgas para ‘refrescamento’. Entre duas operações, nas horas moles da guerra, Calvão bebe uma cerveja no Zé da Amura, dá uma vista de olhos ao ChatNoire e sorri no Altocrim, o entrepernas de Bissau, onde os soldados, depois da triste rotina das sarapitolas no mato, têm as sonhadas alegrias. Mas sobretudo descontrai da mais antiga e trágica actividade humana – homens que se matam, legalmente, em quantidade – dando uso ao “instrumento subjectivo que está dentro de nós e que liberta a alma”. Na Associação Comercial de Bissau, canta Puccini e Verdi, o seu Verdi que “vem da Terra, entra pelos calcanhares e toma conta de nós”. Depois da selva, a civilização. A besta e o homem. A mais fascinante unidade de contrários. Um bom retrato de Calvão, e do eterno masculino.

Feitas as comissões, regressa à metrópole. Fica no Comando Naval e no comando da Polícia Marítima. Já não está na Frente, onde fez História e se tornou mito, mas continua nela. Não há contradição, uma vez que está na Frente da Retaguarda. É o período da Dragão Marinho, quando monta uma rede de informadores em África e na Europa, e do caso Bretagne, em que esvazia caixas com material para o MPLA, de um navio dinamarquês, e torna a enchê-las com areia e os afamados tridentes masculinos das Caldas. É também o tempo da operação Esperanza II, na qual o navio de um armador de Marselha, atulhado de armamento destinado à FRELIMO, acaba os seus dias no fundo do alto mar. Além do DFE 8, das Operações Nebulosas ou da Mar Verde, estes feitos fortalecem o seu estatuto já ímpar nas Forças Armadas Portuguesas. De mito passa a lenda. Não só na tropa mas também no tribunal público dos portugueses e de africanos lusófonos mais velhos e de outros ainda, nomeadamente sul-africanos. Um exemplo destes últimos tive-o num bar de Nelspruit, no Transvaal, em 1986, quando se travava pelo Cuito Cuanavale, em Angola, a maior batalha da história da África Negra. Um dos dois boers, entusiasmado, diz-me:

– Calvau is a warrior’s warrior – o outro loiro abana sins com a cabeça.

Confirmei ali, perto da fronteira moçambicana, o apelo irresistível que o grande homem de armas exerce sobre outros homens. Calvão é um ícone da cultura viril da violência, elogiado com abandono, sem travões retóricos, por quem o conhece. “Uma figura de outra galáxia!”, diz o vice-almirante José Carvalheira. “Um Titã!”, “O maior português vivo!”, exclamam outros. A sua vida, um evangelho de masculinidade ao serviço da grande ideia de Portugal, é icónica mesmo para os mais orgulhosos machos alfa, para os que não precisam de heróis ou para os que perderam a capacidade de admirar outros e até para os seus inimigos.

É da ordem da sabedoria encontrar no efémero o eterno. Pertencendo à mais alta aristocracia da coragem, além de ter sangue e porte fidalgos, Calvão dá corpo ao símbolo arquetípico do guerreiro. Ele é a imagem do centurião que atravessa os milénios, com armas diferentes mas sempre o mesmo homem de guerra que defende o que sabe ser a única certeza: as raízes, os seus. Centurião e homem de honra porque, como diz Hemingway, “every great killer must have a sense of honor”, seja ele soldado ou matador de toiros; e também homem de dever, esse exigente imperativo categórico Kantiano. Aliás, a sua biografia, bem escrita por Rui Hortelão a partir de informação recolhida por Luís Sanches de Baena e Abel Melo e Sousa, tem por título precisamente Alpoim Calvão – Honra e Dever. Porém, mesmo nos nobres de espírito ou “no coração bom, existem abismos”, lembra Santo Agostinho.

O aventureiro e o altar de viagem de Vasco da Gama

Fechada a Guerra de África 1961-1974, e tirando a independência do Brasil, assiste-se ao maior abalo geográfico da nossa História. O Portugal gigantesco e pobre, feito de Pátria e Império, mirra, passa a pequeno rectângulo. O fuzileiro do Fim abomina o 25 de Abril. Faz da data um fetiche negativo. É contra o “25barraA”, não pela democracia que traz, mas pela solução que se quer dar à Questão Colonial. Neste tempo de revolução cruzada com descolonização, que obriga ao refazer da identidade nacional, Calvão tem “uns probleminhas” e mete licença ilimitada na Marinha. “Saneei-me a mim próprio”, dirá desse período de saneamentos selvagens.

Sem guerra, onde se vive muito mal mas muito mais se vive, Calvão não cai na fatalidade de ficar a ver a vida a passar. O homem de acção não pára – a adrenalina vicia, mais ainda se ao serviço de altos valores. Durante o temporal social e político do gonçalvismo, movimenta-se pelo Norte do país e por Espanha como chefe operacional do MDLP (o movimento de acção anti-comunista liderado por Spínola). As mentes mais imaginativas vêem nele um novo Paiva Couceiro. Com Calvão, prenunciando o 25 de Novembro da dupla Neves/Eanes, deixa-se de andar às curvas e passa-se a andar a direito contra a tentativa totalitária. Luta agora à bomba contra o que defendera na adolescência: o ‘socialismo científico’, a ideologia que, além de uma construção explicativa do mundo, oferece a ‘superioridade moral’ como bónus. E a morte em massa nunca antes vista na Terra.

Mas Calvão não combate o comunismo só pelo Norte de Portugal, também o faz no Norte de Angola. Em 1975, a convite da CIA, de Holden Roberto e do comando Gilberto Santos e Castro, vai à bela, alegre e brutal terra da palanca negra. Pedem-lhe uma solução para dar cabo do MPLA que, entrincheirado em Luanda, é apoiado por russos e cubanos. É um excelente problema para Calvão. Estuda-o com o usual rigor. Depois, com o seu sentido da jugular, dá a solução:

– Corta-se a água a Luanda. De seguida, espalha-se o mujimbo de que pusemos minas à entrada do porto. A comida deixa de vir de barco e os draga-minas russos levam meses a chegar. Com sede e sem comida, ficam a apanhar bonés.

Para surpresa de todos, Holden Roberto, atrás dos óculos à tonton macoute, recusa o plano:

– Não! É cruel. Muito cruel.

O encartado sanguinário da FNLA surpreende Calvão e mais ainda Santos e Castro. A explicação para a inesperada doçura de Roberto radicava noutras missas, em missas cantadas no Kremlin e na Casa Branca.

Entretanto, já sem guerra, Calvão anda pelo vasto mundo, dando novo impulso à linhagem dos grandes aventureiros portugueses. Vai até ao Brasil, país que não só descobrimos como, com o apoio forçado de africanos, criámos. É um país à sua dimensão, ido que foi o Império, do qual já está meio refeito. Aí faz dinheiro no medonho mundo do garimpo, onde dorme com um olho aberto e uma pistola na mão. Tem como sócio Fernando Prado, oficial da Marinha Brasileira. Também com Prado, na senda dos trabalhos de Hércules dos sertanejos (e bandeirantes) portugueses que fizeram o Brasil, ergue uma imensa fazenda no infinito sertão. Na fazenda Caiçara, onde abre uma Avenida Portugal com 25 quilómetros, cria gado, produz soja e café. Para aumentar a fazenda de 100 para 140 mil hectares, negoceia com o magnata luso-galego Manuel Bullosa. O negócio começa bem mas quase acaba mal. Bullosa tenta uma finta financeira e, com os bolsos já preparados para recebê-la, é Calvão quem acaba por fintá-lo.

Mete-se também em negócios de armamento. Começa nos Explosivos da Trafaria e continua na Companhia de Pólvora e Munições de Barcarena, de que virá a ser dono parcial. Negoceia armas pelo mundo. Na Somália, num perde-paga com o Ministro da Defesa, ganha dez camelos e um bico d’obra: o que fazer com tantas bossas?! Mas do que mais gosta é de mexer-se, em modo de aventura, em “flibusteirices”, pelo planeta. O lado Indiana Jones consegue-lhe o altar da segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, que oferece ao Museu da Marinha (cuja direcção ainda não teve tempo para juntar o nome do dador à peça exposta). No longínquo Oriente, negoceia objectos de alto valor. Um deles, que fica no Palácio Centeno, do antigo presidente do seu Sporting João Rocha, é um par de cães de Fo em cerâmica chinesa, feito no reinado Wanli da dinastia Ming. Por sua vez, na Ilha de Moçambique, recupera o fantástico faqueiro de mais de duzentas peças do rei Luís Filipe de França usado pelo governador da Ilha onde Camões “invernou”.

Outros negócios, entre tantos, concretiza-os na Guiné-Bissau. Em Bolama, é dono de uma fábrica de descasque de caju. Tem como braço direito José Saiegh, luso-guineense e antigo comando que esteve na Mar Verde. Emprega 300 pessoas. A nota invulgar, mas não para Calvão, que leva tudo a sério, é que, para escoar o caju com turcos, se preparou estudando o Corão. Por seu lado, em Bissau, onde tem uma vivenda virada para a mata, um dos seus campos de glória, faz negócios de arte africana. Tal como Chaves – onde nasceu no premonitório número 8, para mais da Rua do Sol – ou como Moçambique – onde desde criança o fascina ver o sol nascer do mar –, a Guiné é das zonas do planeta onde melhor se sente e melhor julga perceber os indecifráveis desígnios da existência e do universo. Neste jovem país amado, além da fábrica que faz dele o maior empregador privado, fundou a Liga dos Combatentes das Forças Armadas Especiais Portuguesas na Guiné-Bissau.

Extraordinária ironia. Antes da independência, Calvão era o inimigo público n.º 1 do PAIGC; agora, com a fábrica e a Liga, é o maior amigo dos guineenses. Por sua vez, os antigos guerrilheiros, incluindo o falecido Nino Vieira, “formidável combatente”, sentem uma curiosidade de admiradores pelo “homem que invadiu Conakry”. Se o questionam pela aparente contradição, dá uma resposta bem mais valiosa do que a pergunta. Com singelo humor, diz:

– Eu não mudei. Continuo a seguir a ideia-chave do anterior regime, a ideia de ‘Por uma Guiné melhor’!

O tenor lírico e o ‘Canto a la Espada Toledana’

Na primavera de 2001, levei Calvão ao Palácio Ceia, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa, onde tinha o meu gabinete de professor universitário. Fixou-se nos azulejos do Palácio. Depois, falou-me deles com acribia de académico mas sem ostentação erudita. Além do gosto pela azulejaria, é um apaixonado pela pintura, sendo em Miguel Ângelo e Nuno Gonçalves que os seus olhos caem e lá ficam. O tecto da Capela Sistina, um “fortíssimo sinal que pesou” na sua “opção por Deus”, e o grandiosamente misterioso tríptico com a representação “pré-gâmica dos Lusíadas”, são os seus favoritos absolutos. Por seu turno, no que toca a porcelana da China, é um especialista, o que leva investigadores em História de Arte a consultá-lo. O seu gosto pelas coisas belas e do espírito ultrapassa a mera fruição – com a ópera torna-se mesmo um artista que canta árias de ‘Furtiva Lagrima’, de Manon, ou do ‘Canto a la Espada Toledana’. Antes de 1961, chega a cantar no São Carlos. Embora a voz não lhe chegue para ser spinto, consegue por essa altura o “dó, dito de peito, e mesmo o dó sustenido” e namora a ideia de se profissionalizar como tenor lírico. Mas explode o seminal ano de 61, o que leva ao rubro a sua “ânsia de combater”. Primeiro, a guerra; depois, a arte. A ordem natural das coisas.

O seu domínio da palavra não se cinge à que canta, também abrange a declamação e a simples fala. Além de ser uma óbvia figura camoniana, domina o sotaque do Poeta, podendo dizer, como Manuel Alegre, “Camões decassilaba-se em mim”. Também desenrola versos de Pessoa, Torga, Bandeira e Vinícius. Fora de portas lusófonas, aprecia Edmond Rostand, Leopardi, algum Shakespeare e o Victor Hugo de “Mon Père ce héros au sourire si doux, avait un cheval qu’il aimait entre tous!/.../Donne lui tout de même à boire!”. Quanto ao falar, é exímio tanto em situação formal como na palheta. Fala com limpidez de raciocínio, sedução e com o talento de transmitir sabedoria sem dar lições. Um rastreio à sua fala – e escrita, a Contos de Guerra, por exemplo –, faz ressaltar dois traços estilísticos. Um é o humor servido por diminutivos, como dizer que tem “as carótidas entupidinhas” ou que a bela Gabriela de Amado, Sónia Braga, com quem se cruzou em Ouro Preto, é afinal “um coirinho”. O outro traço de estilo é o lustro que dá a vocabulário fora de moda como “na singradura da vida” ou “Ah, a fragilidade grácil dos comandos!”, retumbante e elegantíssima mentira que, numa habitual picardia, nos atirou a José Saiegh e a mim.

Além da coriácea formação militar, da delicada costela artística, do jeito para os negócios e do gosto pelas ‘flibusteirices’, outra faceta deste homem que, como ninguém, vive a vida em plenitude, é a de pater familias. Apoiado por Maria Alda, a esposa de sempre, é um verdadeiro pai, e de dimensão bíblica, quando, por exemplo, faz ponto de honra em transportar ao colo um filho vítima de axonia. Calvão é fora de qualquer dúvida um homem superior, por vezes quase irreal na sua superioridade e nos seus mistérios. Superior mas não perfeito, se a vingança for defeito. Dificilmente perdoa e, quando se vinga, revela sem constrangimentos o seu lado sombrio, solta o seu cão negro. Como quando vai ao Bairro Alto à procura de um patife branco que tinha humilhado um deficiente preto e, num acto de alta pedagogia antiga, acaba por dar-lhe a conhecer alguns dos cumes da dor. Há também quem diga que, tecnicamente, não era bom no futebol. Não tinha o chamado toque de bola, o que compensava com a imortal técnica mista do encontrão e rasteira.

A Providência deu a Calvão qualidades que, em conjunto, formam uma singularidade grandiosa. Nesta grandeza, dois aspectos dão que pensar: os olhos e o nome. Diz-se que aqueles que têm a íris de várias cores, têm também talentos vários.

É o que sucede com ele. Tem esse tipo de íris e, como um homem da Renascença, é excelente em diferentes actividades. No que tange ao nome, diziam os romanos que nome é destino, nomen est omen. Um nome como Guilherme Almor de Alpoim Calvão, tão propenso a fetichismos onomásticos, só poderia antecipar um destino de total excepção. Aliás, ao contrário da maioria dos homens, que cumprem apenas um destino, Calvão percorreu vários. A sua vida é uma heteronímia, real, concreta, não a da brincadeira séria de Pessoa. Contudo, mesmo aqui não deixa de ser camoniano porque, como muito bem viu David Mourão-Ferreira, há vários Camões séculos antes de ter havido os vários Pessoas.

Calvão pode ser medido com Bigeard e não perde, porque é mais vasto, tem mais substância de lenda do que o pára-quedista francês. Se se recuar no tempo, é comparável aos grandes capitães do Império, aos grandes navegadores. E, se, para Manuel Alegre, em Jornada de África, Spínola é “o novo condestável”, Calvão bem pode ser, no Fechamento, a reencarnação – sabe-se lá! – de um dos grandes da Expansão. Talvez de Albuquerque, que, a par do pai, foi o seu herói na adolescência. Seja como for, se estivermos com Hegel, Calvão é um herói autêntico porque é aquele que se opõe ao homem actual, que o ultrapassa, que é portador de um momento do espírito, o que, no seu caso, é o da grandeza de Quinhentos no século XX. A substância desse tempo camoniano dos heróis mantém-se no fuzileiro do Fim do Império. Contudo, porque “o mundo é feito de mudança”, essa substância tomou “nova qualidade”, não a do tempo cinzento de anti-heróis de Pessoa, mas a do solar tempo lusófono do messiânico Padre António Vieira.

O Cocoana Guilherme, o Tejo e o Mar

Sábado, Novembro, 2013. Durante o almoço mensal do Bando dos Cinco, num restaurante do Cais do Sodré, donde tantos marinheiros, soldados e aventureiros partiram para a Expansão, Calvão é o centro. Emagrecido pela doença (“Agora sou umas peles penduradas num cabide”, diz em auto-irrisão) e com o corpo a atraiçoá-lo, mantém, no entanto, a mente privilegiada. Nos aperitivos, a conversa salta dos achaques da idade para a teologia, com Calvão a deter-se em Hans Küng, e para uma gravura de Rubens que o velho fuzileiro lendário tenciona ir buscar a Marselha. Com a chegada do prato de substância, assessorado por Vale Pradinhos, surgem os pratos fortes da conversa: a crise, os países lusófonos, o patriotismo. Portugal é o arreigamento, o “mais antigo e constante Amor, que nunca vacilou”, de Calvão. Portugal é a palavra da sua vida. Emparelha-a com Império. E, já há décadas, com Lusofonia. Sem qualquer relação neurótica com as ex-colónias. A sua condição saudosa de português não é nem passadista nem arca com complexos de culpa.

Terminado o longo almoço, as despedidas. João Almeida Bruno, José Carvalheira, o professor de medicina Ângelo Lucas e eu próprio damos o nosso abraço ao Guilherme. Agora o Cocoana, o Velho para os moçambicanos, de sobretudo preto e elegante bengala, caminha, atraindo o olhar dos que passam, fazendo-os esquecer o Duque da Terceira feito estátua. O homem que, com Chenier de Giordano, pode afirmar “Con la mia voce, ho cantato la Patria”; o homem que, se não ganhou – nem perdeu – a Guerra da Guiné, ganhou a guerra dos mitos e das lendas; o homem que, se falhou nalguma coisa, foi no século; esse homem, um Grande de Portugal que quer as cinzas enterradas na água, lá onde o “suave e brando Tejo” morre, segue o seu caminho de cara ao sol que agoniza no Mar Português. (Sol)

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