Portugal vivia a época conturbada do pós-25 de Abril, período que, tal como na definição de revolução de Charles Tilly, historiador e sociólogo, passou pela “transferência forçada de poder, durante a qual pelo menos dois grupos distintos de contendores têm pretensões incompatíveis ao controlo do Estado”. Desde Setembro de 1974 que um destes grupos estava em ascendência: a “deriva comunista” da revolução portuguesa iniciou-se com o 28 de Setembro, que, à imagem do 11 de Março, teve o cunho das “aventuras impensadas”de António de Spínola, que em ambos os casos facilitaram a disseminação das visões mais extremistas entre a população, silenciando os moderados. “A sociedade portuguesa em 1975 era simplesmente demasiado anárquica, variada, activa e inconstante para que um qualquer centro fosse capaz de lhe impor um rumo coerente e continuado no tempo”, define António José Telo(“História Contemporânea de Portugal, vol. 1”, Presença), que punha nestes avanços a razão para o centro ter caído temporariamente para o radical.
O 28 de Setembro foi o dia marcado por Spínola para a manifestação da “maioria silenciosa”. O militar mais associado à direita da revolução, “não podendo ser eleito, queria ser aclamado. O MFA resolveu impedi--lo. Depois de uma dramática contagem de espingardas, na noite de 27 para 28 de Setembro, Spínola desistiu da manifestação” (Rui Ramos, “História de Portugal”, Esfera dos Livros). A organização do movimento spinolista levou, porém, a uma reacção idêntica pelo PCP, que ajudou o MFA no bloqueio dos acessos a Lisboa – muitos latifundiários do Alentejo estavam com Spínola e/ou contra a ideia socialista de reforma agrária. A tentativa de Spínola de se ver aclamado levou à inclinação da revolução à esquerda, que no rescaldo dos eventos fez vingar a ideia de que “tinha defendido a nova situação contra um imaginário ‘regresso ao fascismo’”, diz Rui Ramos.
A ideia do regresso ao fascismo foi amplamente propagada nos meios de comunicação, tendo no entanto uma base, como o facto de muitas das grandes famílias “do capital” terem financiado o 28 de Setembro: os trabalhadores do então Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa detectaram e denunciaram “os apoios dados por aquela instituição de crédito ao Partido do Progresso e ao Partido Liberal”, da direita conservadora e envolvidos na manifestação, “bem como o financiamento de materiais de propaganda e de meios de transporte alugados para a manifestação”, denúncias que surgiam já por cima da acusação de desvios de fundos para contas da família Espírito Santo e movimentos semelhantes noutros bancos (Ricardo Noronha, “Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX”, Colibri), que motivavam o medo do regresso do fascismo. Com o fracasso da “maioria silenciosa”, Spínola demite-se, a 30 de Setembro, e Costa Gomes sucede-lhe.
A partir do final de Setembro, o PCP ganha um novo ascendente sobre os acontecimentos, obrigando os partidos do centro –PS e PPD – a conterem-se. O PS aproxima-se de Costa Gomes, o PPD escolhe como lema do primeiro congresso a “Solução Socialista” e apaga-se ainda mais com a perda temporária de Sá Carneiro em 1975. Ambos ficam condenados a assistir à ofensiva da via mais socializante, agora reforçada com um maior domínio dos movimentos sindicais e das autarquias. Crescem então as acusações de “sabotagem económica” por parte das empresas, que precedem o aumento da intervenção estatal nas mesmas a partir de Novembro. Em Janeiro de 1975, Mário Soares vem a público denunciar “a escalada do domínio que o PCP deseja exercer sobre a sociedade portuguesa” e, gradualmente, os moderados vão recuperando o espaço perdido com o 28 de Setembro – algo visível por exemplo no facto de o Plano Melo Antunes não prever nacionalizações. Mas depois veio Março.
Em Janeiro de 1975 nasceu em Espanha o Exército de Libertação de Portugal (ELP), “declarando-se disposto a combater a ‘ditadura comunista’ em Portugal”, organização cujo sector de informações estava a cargo de Barbieri Cardoso – ex-PIDE, envolvido no assassinato de Humberto Delgado. “O ELP será infiltrado muito cedo por elementos ligados ao MFA”, que tomam “conhecimento [a 19 de Fevereiro] de que havia planos para vagas movimentações de repor Spínola no poder”, que viriam a verificar-se “muito semelhantes ao executado no 11 de Março”, conta António José Telo. Spínola já tinha inclusive preparado o discurso para o pós-golpe –“Fui de novo chamado a assumir as responsabilidades da presidência...”. Tudo se terá precipitado aquando da explosão dos rumores sobre a “matança da Páscoa”, uma lista que teria centenas de nomes de civis e militares que o PCP se preparava para abater, incluindo Spínola. Nem este nem os seus apoiantes duvidaram da existência da lista e procuraram a antecipação.Porém, “do lado spinolista tudo era feito na forma descentralizada e amadora que era já habitual”, diz o mesmo historiador.
Em entrevista à “Newsweek”, já em Novembro de 1975, Spínola conta que foi o receio da “matança da Páscoa” que o levou a refugiar-se em Tancos na madrugada de 11 de Março. Ali, acompanhado por militares da sua confiança, foi-lhe garantido que estava em marcha um plano para dar a volta à situação. Era já demasiado tarde para recuar, salienta. O plano terá sido elaborado durante a madrugada, partindo de ideias já existentes e (também)a pressa terá determinado o fracasso:os T-6 saíram de Tancos e atacaram o RAL1 – quando deviam ameaçar apenas – e os pára-quedistas tentaram cercar o mesmo mas no RAL1 já havia quem estivesse de sobreaviso. Depois as unidades com que Spínola contava para apoio adicional não partem para a rua, com Salgueiro Maia a recusar a aventura, tal como Jaime Neves.
O desfecho da tentativa de golpe é, no mínimo, caricato:a única acção é o ataque ao RAL1, onde os militares acabam aos abraços com os pára-quedistas que os cercavam, uns e outros invocando obedecer a ordens do mesmo Presidente, tudo isto com câmaras a filmar. Spínola foge para Badajoz a meio da tarde. Menos caricata foi a nova volta que o país dá pós-11 de Março, com novo ocaso dos moderados e recrudescimento do PCP, tal como em Setembro. Este desfecho, assim como o pré-aviso existente sobre o golpe spinolista, levanta a questão dos rumores da “matança da Páscoa”, já que estes não terão sido mais que uma forma de precipitar Spínola para novo golpe, fazendo-o escorregar na casca de banana posta à sua frente. O 11 de Março acaba por anular os ganhos recentes das vias moderadas e dias depois Cunhal ameaça Soares – ou te juntas a nós ou és eliminado “como a direita” – e o centro percebe que o tempo é de ir com a corrente. (I)
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