O som da campainha ecoa pelos corredores das camaratas às 6h45. Um quarto de hora depois da alvorada fazem a primeira formatura do dia. Estão dispostos lado a lado, em silêncio, enquanto aguardam a ordem do chefe de batalhão, que assinala as presenças antes de os libertar para o pequeno-almoço. É uma rotina implacável, cumprida religiosamente durante os cinco dias úteis da semana. Não estamos perante um teatro de guerra ou de um exercício militar, mas os rituais estão todos lá: o içar da bandeira, as palavras vociferadas em coro, a marcha batida no chão em compassos certos, as botas impecavelmente engraxadas sob uma farda sem vinco que se lhe note. Ao todo, são 130 os alunos que frequentam o Instituto dos Pupilos do Exército (IPE). A escola, que foi uma das primeiras estruturas da República, esteve em vias de desaparecer há dois anos. Hoje, quando se prepara para celebrar 100 anos de existência, os responsáveis dizem que "há listas de espera". E não são apenas os filhos dos militares que frequentam aqueles pavilhões que se erguem no sopé do parque florestal de Monsanto, em Lisboa.
"Apenas uma minoria segue a via militar, talvez 10% tenham esse desejo", garante o tenente-coronel Jorge Campos, um dos militares mais graduados da escola. Em tempos cumpriu missões no Afeganistão ao serviço da NATO, hoje os dias são mais tranquilos. Ainda assim, faz questão de dizer que esta é apenas "outra missão". A escola é tutelada pelo Ministério da Educação, os programas são semelhantes e o método de ensino não difere de outros estabelecimentos de ensino públicos. Mas é apenas isso que cola com a realidade da maioria dos estudantes portugueses. "Tudo o resto é diferente. O modelo de comportamento é inspirado nas tradições militares, nos valores de lealdade, camaradagem, disciplina e patriotismo", esclarece-nos, pouco antes de bater continência a um aluno de palmo e meio que lhe pede licença para desmobilizar. "À vontade, Gonçalves", diz para o miúdo de 15 anos.
O ensino compreende o segundo e o terceiro ciclos, e a partir do décimo ano os alunos podem optar pela vertente profissional. Há cursos de Técnico de Gestão Industrial, Gestão de Ambiente e Energias Renováveis, mas é a disciplina que salta à vista de quem se aventura pela primeira vez entre as casernas transformadas em blocos de aulas. Não se escutam as palavras sonoras típicas da linguagem militar - à excepção das formaturas - mas a postura dos capitães, sargentos e demais patentes fazem-nos esquecer momentaneamente a idade dos rapazes que frequentam a escola. São eles que substituem os pais durante a semana de internato. "Querem que os filhos sejam disciplinados e cultivem os valores da lealdade. Delegam em nós essa competência, apesar de trabalharmos em estreita colaboração com eles. Se eu castigar algum, o pai não lhe pode levantar esse castigo."
Ao sol e à chuva Ainda não deu o toque de entrada e já Vitoriano corre para a aula. Os atrasos são penalizados com castigos, tal como as faltas de material ou disciplinares. Após cinco faltas, explica o capitão Ferreira, responsável pela 1.a Companhia, que compreende os alunos do 5.o ao 10.o anos, "ficam privados do fim-de-semana em casa".
Vitoriano estanca o passo e recupera o fôlego para uma curta conversa em frente ao pavilhão onde as aulas estão prestes a começar. "O meu pai disse-me que a primeira coisa de jeito que fez na vida foi inscrever-se numa escola militar. Eu fiz o mesmo." A farda azul deixa escapar a sua condição de novato naquelas andanças. Os mais novos distinguem-se dos mais velhos pela cor do traje: azul para quem chega, verde para os "veteranos". Ao contrário da maioria dos alunos que frequentam o Instituto Pupilos do Exército, o rapaz de 13 anos pretende seguir a carreira na Academia Militar. Ali, sim, deixam de ser civis para abraçar o exército. Até lá, Vitoriano ainda tem muito que madrugar. Nada que o preocupe demasiado ou lhe tire o sono.
"Já estava habituado a acordar cedo. Em Angola a minha casa ficava muito longe da escola. Tinha de acordar às cinco da manhã", conta-nos enquanto ajeita o barrete na cabeça. "A única coisa que me custa aqui é o frio. O Inverno é diferente de lá."
Nas instalações da escola, o tempo pouco ou nada altera as rotinas. Faça chuva ou sol, as aulas de educação física são quase sempre dadas ao ar livre. À parte dos jogos com bola, os alunos dispõem ainda de um pavilhão, onde podem aprender artes marciais, e uma piscina coberta, para a prática de desportos de água.
Escuta-se o som do toque para a primeira aula. À porta da sala, um grupo de rapazes prepara a formatura para a chegada do professor. Seis deles debruçam-se em círculo sobre um telemóvel, controlados discretamente à distância por alguns dos militares. Os aparelhos não são permitidos durante o dia, apenas nas camaratas. "Mas, como qualquer miúdo, nem sempre cumprem as regras", explica o capitão Ferreira. Apesar de manter uma postura de rigor, a relação que cria com os alunos vai muito além disso, há laços de afectividade que não se captam ao primeiro olhar. "Costumo dizer que em casa tenho um filho. Aqui tenho 80", sorri.
Faz-se silêncio à chegada do professor, quebrado apenas pelo pedido de autorização para entrar na sala, feito pelo chefe de batalhão. É um aluno como outro qualquer, mas com responsabilidades acrescidas. É ele que faz a ponte entre os colegas e os militares. A sua grande regalia é ter um quarto individual. O único com esse benefício, conquistado na semana de formação que antecede o início das aulas, em Setembro. "Não tem de ser o melhor aluno, na maior parte das vezes nem é. Mas tem de ter espírito de liderança. E isso é o que nós apurámos na tal primeira semana de formação."
A hierarquia está sempre presente. Seja nas aulas, nos dormitórios ou no refeitório. O almoço de hoje é arroz com bife e salada. Durante a refeição, o capitão Castanheira percorre, para a frente e para trás, o corredor entre as mesas. Raramente altera a postura: mãos atrás das costas, pistola à cintura, passo lento. Quando terminam a refeição, o aluno responsável por cada mesa dirige-se à patente mais alta para pedir autorização de saída. Estala os calcanhares das botas um contra o outro, projecta o peito para a frente e bate continência. O militar devolve-lhe o cumprimento e 30 segundos depois estão todos cá fora para um momento de relaxe. De alguma forma, para serem crianças. Até à próxima formatura.
Fazer a cama cheira a ciclo preparatório. Na entrada do edifício com três pisos de camaratas figura o lema do Instituto dos Pupilos do Exército: "Querer é Poder." A frase é levada a peito por cada um dos alunos, tal como o quadro de honra onde figuram os chefes de batalhão de cada ano lectivo. Na parede oposta, as imagens de Cavaco Silva, do chefe do Estado Maior do Exército e do major que dirige a escola compõem o puzzle da iconografia militar, espelhada um pouco por toda a parte. "Aos que partindo daqui quiseram e souberam vencer a própria morte."
A organização das camaratas varia em função da antiguidade dos alunos. Tal como os valores que lhes são incutidos. "Aos mais novos, procuramos transmitir--lhes os ideais de camaradagem e espírito de grupo", explica o capitão Ferreira. A esses alunos estão destinadas as camaratas com maior número de camas. "Quando os valores estão mais definidos, começam a gozar de outra liberdade. Passam para as camaratas com menos alunos."
As camas estão irrepreensíveis. Aos pés, repousam botas da tropa e chinelos. Os restantes pertences são guardados a cadeado em armários individuais. Durante a noite, apenas um funcionário civil guarda os dormitórios. É a ele que cabe a responsabilidade de não deixar que os miúdos circulem livremente pelo edifício. "A partir das 23h00, as luzes dos quartos são apagadas. Apenas no corredor se mantêm acesas. Temos de garantir as horas de sono", explica o capitão da 1.a Companhia.
Numa camarata com seis camas, um grupo de três alunos prepara a farda de saída, ajeitando entre si os botões dourados do casaco. "Vão fazer um concurso de ditado fora da escola", esclarece- -nos o militar que acompanha a visita à camarata. "Vá despachem-se", diz-lhes. As fardas não têm apenas o peso institucional. Cada um deles transpira o orgulho de vestir o traje militar. "Achei que podia ser uma melhor oportunidade para estudar, mas também para saber mais sobre liderança. O tio é militar e foi ele que o incentivou. Viver num internato é como estar num quarto com muitos irmãos. E também porque gosto muito da farda", explica-nos, de fugida, o jovem Castro, de 16 anos.
O discurso repete-se mais adiante, não importa a idade. "Temos de estudar, ser autónomos e organizados. Tenho 15 anos, estou cá desde os 10 anos. Vim para cá por opção minha. Primeiro porque me agrada a farda, depois porque quero crescer, ganhar valores", conta-nos outro, com a barba ainda mal semeada num rosto pueril.
É o próprio capitão Castanheira, responsável pela 2.a Companhia, que estipula o dia de fazer a barba. "Há quem não precise, há os que fazem duas, três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas, por exemplo. Outros fazem uma vez por semana e chega."
Oficinas Tal como qualquer miúdo, também os pupilos do exército preferem as aulas práticas às teóricas. É algo que se constata facilmente no entusiasmo dos 15 alunos que esta tarde ocupam as oficinas de serralharia e mecânica, onde decorre uma aula de técnicas oficinais. "Às vezes não os conseguimos tirar daqui", conta o sargento Horta, pouco antes de disparar para o jovem Amaral um "voltaste a esquecer-te dos óculos de protecção!"
Depois de terminados os cursos de formação profissional, que dão equivalência ao 12.o ano, o IPE garante estágios em empresas do ramo. Os que são bons, garante o professor, "facilmente arranjam emprego". Mas isso apenas se aplica aos que querem seguir a vida civil. Aos outros, talvez os espere uma carreira militar. Se assim for, dificilmente voltarão a despir a farda". "Seremos os homens de amanhã", atira um rapaz de 13 anos, antes de bater continência aos jornalistas. (Público)
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