Desfile do CEP antes do embarque para França na Praça do Comércio, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA |
Vale a pena, por isso, determo-nos um pouco sobre essa mesma corrente, os seus princípios e os seus objectivos, para melhor entendermos as causas dos insucessos portugueses e as suas consequências. Vale a pena também lembrar que o intervencionismo português não foi um fenómeno isolado: em vários outros países europeus – Itália, Grécia, Roménia – a intervenção na guerra foi vista como o cortar do nó górdio, que permitiria resolver várias questões domésticas e internacionais.
A frente interna
A igualdade de sacrifício entre todos os portugueses (obrigatoriedade de serviço militar, igual acesso a bens de primeira necessidade) não passou de uma miragem. Lentamente agravou-se a falta de mantimentos e de carvão mas os navios alemães, apresados, segundo Afonso Costa, para acudir à economia nacional, foram postos à disposição da Grã-Bretanha. Questões como a amnistia por crimes políticos e sociais, a introdução da pena de morte no código militar e o papel do Conselho Económico Nacional, no qual se reuniriam o Governo e as ‘forças vivas’ do país, vieram envenenar o relacionamento entre os grupos parlamentares dos dois partidos governamentais. Mas os golpes decisivos contra a União Sagrada seriam desferidos pelos inimigos da classe política republicana, alguns bem conhecidos, outros que emergiram das sombras graças à guerra.
Machado Santos fora preso após a revolta de 14 de Maio de 1915, e desde a sua libertação conspirara contra a União Sagrada a tempo inteiro. A 13 de Dezembro de 1916 passou ao ataque, mas muitos dos que lhe garantiram o seu apoio acabaram por nada fazer, sendo a revolta facilmente dominada pelas forças leais ao Governo. Mas ficou o aviso e assim largas dezenas de oficiais foram presos. Os efeitos militares e políticos não se fizeram esperar. No mês seguinte, oficiais de várias unidades recusaram-se a partir à frente dos seus homens para Lisboa, onde embarcariam rumo a França. Para espanto de muitos observadores, sobretudo nos exércitos aliados, estes oficiais cumpriram o seu castigo a bordo dos navios que os levaram até Brest, sendo depois devolvidos às suas unidades. As medidas tomadas para punir os responsáveis do 13 de Dezembro, mais severas, dividiram o partido evolucionista, tendo alguns deputados abandonado António José de Almeida para reconstituir o velho ‘bloco parlamentar’ com os unionistas de Brito Camacho.
Em Abril de 1917 caiu o Governo de António José de Almeida, no Parlamento, após um episódio ainda envolto em mistério, um voto de confiança que nunca devia ter ocorrido. Seguiu-se-lhe o terceiro (e último) Governo de Afonso Costa, ainda sob a égide da União Sagrada, mas agora composto apenas de ministros democráticos. Tal executivo não conseguiu mobilizar o patriotismo de todos os portugueses num momento de emergência nacional – emergência essa que não teimava em não passar: em Maio, motins populares em Lisboa com suspensão de garantias constitucionais; em Julho, greve da construção civil com nova suspensão de garantias (e com o parlamento reunido em sessão secreta); em Agosto, greve na Companhia das Águas de Lisboa; em Setembro, greve dos trabalhadores dos correios (um bastião republicano), à qual o Governo responde com a mobilização militar da corporação, sendo a greve por isso mesmo equacionada a deserção. A resposta foi imediata: greve geral decretada pela União Operária Nacional. Por todo o país, distúrbios e revoltas ocasionados pela falta de alimentos. Acossado por todos os lados, Afonso Costa começou a ser contestado pelo seu próprio partido. Julgou o líder democrático ter resolvido os problemas económicos mais prementes do país em Paris, em finais de Novembro/início de Dezembro, durante uma conferência aliada; mas o seu regresso a Lisboa foi interrompido pelo golpe de Sidónio Pais, apoiado por tropas prestes a partir para França.
Uma segunda dimensão do intervencionismo português prendeu-se com a defesa do império colonial, cuja partilha entre pela Alemanha e a Grã-Bretanha tinha sido discutida já durante o regime republicano. A defesa activa das colónias portuguesas e a participação na conquista das colónias alemãs era vistas como expedientes para calar definitivamente as críticas que choviam sobre a administração colonial portuguesa, tida como brutal e ineficiente.
É nas campanhas de África que a falta de discernimento do intervencionismo português mais se faz notar: derrota após derrota, desastre após desastre, até ao descrédito total entre os aliados. O Exército parece não ter reflectido sobre as razões da derrota de Naulila, no sul de Angola, em finais de 1914, muito antes da declaração de guerra alemã. E enquanto outras potências coloniais mobilizavam o império para melhor combater na Europa, Portugal viu-se forçado a mobilizar a metrópole para defender as colónias, não só dos alemães como ainda das populações locais, que viram na guerra a conjuntura ideal para se subtrair à soberania portuguesa, nalguns casos bem recente.
O desgaste de homens e oficiais foi tremendo e a escala das baixas difícil de compreender numa força habituada a combater em Moçambique. A esmagadora maioria das mortes sofridas pelo Exército durante a Grande Guerra é-o em Moçambique, revelando-se a doença um inimigo muito mais mortífero do que o alemão.
Em Novembro de 1917, ainda sob a vigência da União Sagrada, novo desaire, mais perigoso do que Nevala: os restos do exército alemão, comandados por von Lettow-Vorbeck e acossados por todos os lados, atravessam o Rovuma e caem sobre a posição portuguesa de Negomano, que capturam sem grande esforço, encontrando as armas e munições e os mantimentos de que necessitam desesperadamente.
A defesa do solo francês pelo exército português fez sempre parte do projecto intervencionista, estreitando os laços entre as duas repúblicas. Portugal rejeitou sempre sugestões de que o seu exército fosse enviado para a frente de Salónica, ou para o Médio Oriente: só a Frente Ocidental interessava, vincando a natureza ideológica da participação portuguesa na Grande Guerra.
A transformação da Divisão de Instrução num Corpo Expedicionário acabou por ser aceite por Londres (falaram mais alto as perdas sofridas pelos aliados em Verdun e no Somme do que as dúvidas sobre o real valor da unidade) após um longo compasso de espera. De divisão reforçada, o CEP passou a corpo de exército, tendo Norton de Matos sonhado a certa altura no envio de uma segundo corpo de exército.
A vida do CEP é assim a história de um sacrifício feito por oficiais e soldados por razões de cariz político, oficiais e soldados esses que se sentiram desprezados e abandonados à sua sorte. Ainda antes do golpe sidonista o Governo sentia as maiores dificuldades em preencher os quadros do CEP e garantir seu abastecimento; a partir do golpe, a situação agravou-se, mercê do não regresso a França de oficiais em licença em Portugal e do fim do envio de reforços. A batalha do Lys, a 9 de Abril de 1918, é travada por um exército desfalcado, desnorteado e votado pelo comando britânico à saída das trincheiras nesse mesmo dia, de forma a repor alguma ordem nas suas fileiras.
Embora Portugal seja contado entre as nações vitoriosas da Primeira Guerra Mundial, a verdade é que o intervencionismo português saiu claramente derrotado da contenda. Em Março de 1919 Afonso Costa substituiu Egas Moniz na presidência da delegação portuguesa à Conferência de Paz. Julgou Costa que as suas credenciais intervencionistas lhe permitiriam uma defesa mais eficaz do interesse nacional do que a esboçada por alguém nomeado por Sidónio Pais. Nada indica, porém, que assim tenha sido.
O que a delegação portuguesa realmente pensou do Tratado consta das actas das suas reuniões, recentemente publicadas (Estratégia Portuguesa na Conferência de Paz 1918-1919: As actas da Delegação Portuguesa) por Duarte Ivo Cruz. Um membro da delegação, Jaime Batalha Reis, não se conteve: “Desde Alcácer-Quibir, esta nossa nova vitória foi o nosso maior desastre”.
National University of Ireland, Maynooth (Fonte : Jornal O Público)
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